Em 9 de dezembro de 1948, o jornal Quilombo foi publicado pela primeira vez no Rio de Janeiro. Foram 10 edições, em dois anos da publicação, que davam espaço para as reflexões e proposições do Teatro Experimental do Negro, fundado pelo ator, poeta, escritor, artista plástico e ativista Abdias do Nascimento (1914-2011), com o propósito de abordar a “vida, problemas e aspirações do negro”. A publicação foi pioneira ao acolher a voz das mulheres negras na coluna Fala Mulheres, em trazer a discussão de uma vanguarda nas artes e em propor a discussão sobre representatividade negra na política.





O legado do jornal inspirou as mostras “Quilombo: Vida, problemas e aspirações do negro”, na Galeria Lago, e “O mundo é o teatro do homem”, na Galeria Fonte, ambas em Inhotim, localizado em Brumadinho, na Grande BH. Abertas no último sábado (19/11), as exposições dão sequência à parceria entre o Instituto Inhotim e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), iniciada em 2021, a partir de pesquisa da obra e vida de Abdias, e o Museu de Arte Negra, que, apesar do acervo importantíssimo, não tinha sede física.

Foram adquiridas para o acervo do Inhotim obras de 34 artistas negros que integram a mostra “Quilombo”. Trata-se de um recorte da produção de artes contemporâneas, protagonizada por Arjan Martins, Paulo Nazareth, Desali, Robinho Santana, Erica Malunguinho e Ana Elisa Gonçalves, entre outros. As duas exposições ocorrem paralelamente ao “Segundo ato: Dramas para negros e prólogo para brancos”, parte da mostra “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”, realizada em parceria com o Ipeafro desde 2021. A exibição, aberta em maio de 2022, pode ser conferida até fevereiro de 2023, na Galeria da Mata.

Com "Prosperidade", Pedro Neves, artista radicado em BH, enaltece a conexão entre Inhotim e Abdias do Nascimento

(foto: Márcia Maria Cruz/EM/D.A Press)

EIXOS 

A mostra “Quilombo” está organizada em cinco eixos: “Novo poder”, “Vidas públicas”, “Vida e aspirações do negro”, “Reescrita da história: Construção e afirmação da identidade” e “Elas falam”. “A mostra nos emociona muito, porque é exatamente o que nós propusemos fazer desde o início: trazer os talentos dos artistas negros contemporâneos para esse espaço de convívio com o legado do Teatro Experimental do Negro”, afirma Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e presidente do Ipeafro.





O fato de a mostra ser realizada apenas em 2022 denuncia o racismo que permeia a sociedade até os dias atuais, avalia Elisa, que considera “avanço tardio” a exposição de artistas negros em Inhotim. “Abdias diria que a luta continua. Porque nós estamos em 2022, nós estamos a quantos? Cento e trinta e tantos anos da abolição da escravatura e, na verdade, o que mudou se transformou muito lentamente, apesar dos esforços e constante atuação do povo negro organizado para efetuar a mudança”, diz a parceira de vida e trabalho de Abdias.

VIOLÊNCIA DENUNCIADA 

Na mostra “Quilombo”, é possível ver o trabalho de artistas de diferentes gerações – do pintor e escultor carioca Arjan Martins, artista reconhecido, como de jovens talentos, entre eles Pedro Neves. No eixo “Identidade”, a acrílica sobre tela, de 3m x 4m, mostra, em primeiro plano, a imagem de três crianças negras.

O painel foi realizado para a Bienal de Montevidéu, no Uruguai, em 2019, com o objetivo de denunciar os assassinatos de jovens negros pelo Estado brasileiro. “Havia muita notícia de crianças inocentes sendo gravemente atacadas pelo Estado. Muito reflete essa época, que vimos o João Pedro, a Ágatha e outros jovens inocentes, é bom frisar, negros assassinados pelo Estado que exerce força contrária em vez de acolhê-los e protegê-los. As crianças não conseguem atravessar a rua para chegar à padaria e são assassinadas”, avalia Arjan. 





Nascido em Imperatriz do Maranhão, o artista plástico radicado em BH Pedro Neves destaca a importância de ter uma obra associada ao legado de Abdias do Nascimento. “Fico muito feliz de ver que Inhotim está absorvendo essas transformações. Eles começaram da melhor forma que é trazendo Abdias, ancestral para a gente que trabalha com arte. Para mim, poder estar associado de alguma maneira ao trabalho dele é uma honra muito grande.”

O artista plástico pintou a tela de 2,5m x 2m intitulada "Prosperidade''. “Represento várias figuras, que se unem em uma só. Quando fiz esse trabalho, tinha acabado de aniversariar... E isso ficou reverberando dentro de mim como que prosperidade é um conceito para além dos bens materiais. Como a presença, a alegria de poder estar junto das pessoas que a gente gosta são formas de prosperidade.”

Autorretrato de Ana Elisa Gonçalves dá voz às negras no eixo "Elas falam". Mostras estão conectadas com o "Segundo ato: Dramas para negros e prólogo para brancos"


VOZ DAS MULHERES 

Ana Elisa Gonçalves pintou um autorretrato que figura entre as obras do eixo “Elas falam”, da mostra “Quilombo”, em que aparece vestida com uma saia de chita colorida e com um nó na ponta. A tela, que integra a série “Nodado”, foi inspirada na história oral que ouviu de mestres da capoeira e das tradições da mãe, que vem do Norte de Minas. “A história que um dos meus mestres me contou é que as mulheres davam um nó na saia para poder praticar a capoeira e entrar no jogo.”





E completa: “Tem conexão com a história da minha mãe, com o Norte de Minas, onde há essa relação com a chita e tem a ver também com a minha experiência com samba de roda”. Ana Elisa destaca que a mostra resulta do fato de que a geração à qual faz parte tem a oportunidade de se “autonarrar”. “Esse grande repertório que Abdias do Nascimento deixou é essa continuidade, da construção de algo que vem de longe.”

A curadora Nutyelle Cena, do coletivo Nacional Trovoa, destaca a força da coletividade presente na mostra “Quilombo”. “Temos hoje um panorama de presença de mulheres racializadas no campo das artes. Só que ainda continuamos sendo minoria. Oportunidades, como é essa curadoria, fazem com que mudanças sejam realizadas. Mas estamos em um caminho muito devagar”, diz ela, uma das autoras do vídeo “Insurgências”.

Com o filme "Olho da rua", da mostra "O mundo é o teatro do homem", Jonathas de Andrade registrou a subjetividade da população em situação de rua

(foto: Márcia Maria Cruz/EM/D.A Press)

INVISÍVEIS RETRATADOS 

Pessoas em situação de rua se reúnem na Praça Hipódromo, no Recife, para uma comemoração. O encontro foi uma proposição de Jonathas de Andrade, que quis registrar a vida da população em situação de rua no auge da pandemia de COVID.





Com duração de 25 minutos, “Olho da rua” registra ações como olhar-se no espelho, preparar refeição, compartilhar momentos festivos, que revelam a subjetividade de sujeitos, muitas vezes, tornados invisíveis. “O filme parte do desejo de ver a pandemia… De ver gente indo comprar coisas no supermercado com medo e não abrir a janela para um monte de gente passando fome nas cidades”, conta Jonathas. “O Brasil voltou para o mapa da fome e eu quero falar com essas pessoas”, revela. 

A obra integra a mostra “O mundo é o teatro do homem”, em cartaz na Galeria Fonte, que também conta com a obra da dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. A curadoria destacou no espaço a relação de Abdias com Augusto Boal, teatrólogo que lançou as bases do Teatro do Oprimido. Outro ponto em destaque é a aproximação do TEN com o psicodrama, método teatral e terapêutico desenvolvido pelo médico romeno-austríaco Jacob Levy Moreno.

CRÍTICA ABERTA 

O artista Maxwell Alexandre fez post no Instagram, na sexta-feira (18/11), em que pedia a retirada de seu trabalho da mostra “Quilombo”. “Repudio ve- ementemente a inserção de minha obra ‘Sem título’, da série 'Novo poder', na exposição... Assim que me deparei com a comunicação da exposição, eu me constrangi”, escreveu.





Ele afirmou que é preciso ter um número maior de negros “em cargos altos de poder decisivo”. Se incomodou de “Quilombo” reunir 34 artistas negros, enquanto a mostra “O mundo é o teatro do homem” reunir três artistas brancos. “Trinta e quatro pretos sob um título que sugere a abordagem de sonhos e problemas do negro. Enquanto três brancos sob um título com ênfase universal, no mundo e na humanidade”.

A obra de Maxwell foi adquirida para o acervo do Inhotim. A instituição pontua que o artista aceitou participar da mostra e que os canais de diálogo estão abertos. “Maxwell deu aceite à exposição há alguns meses e, com base nesse aceite, a curadoria fez um projeto de exposição que envolve outros artistas. Pensando nessa coletividade, um cenário um pouco mais sistêmico, não faria sentido retirar apenas essa obra”, afirma Deri Andrade, curador assistente.

Jornal Quilombo teve o propósito de abordar a "vida, problemas e aspirações do negro"


“QUILOMBO: VIDA, PROBLEMAS E ASPIRAÇÕES DO NEGRO”
Mostra coletiva na Galeria Lago, integrada por Aline Motta, Ana Elisa Gonçalves, Antonio Obá, Arjan Martins, Desali, Elian Almeida, Erica Malunguinho, Eustáquio Neves, Gustavo Nazareno, Januário Garcia, Juliana dos Santos, Kika Carvalho, Larissa de Souza, Lita Cerqueira, Maxwell Alexandre, Moisés Patrício, Mulambö, Nacional Trovoa, No Martins, O Bastardo, Panmela Castro, Paulo Nazareth, Pedro Neves, Peter de Brito, Rafael Bqueer, Robinho Santana, Ros4 Luz, Rosana Paulino, Sidney Amaral, Silvana Mendes, Tiago Sant’Ana, Wallace Pato, Yhuri Cruz e Zéh Palito

“O MUNDO É O TEATRO DO HOMEM” 
Mostra na Galeria Fonte, com Jonathas de Andrade, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, seleções do Acervo Augusto Boal e Acervo Ipeafro.
As mostras estão em cartaz no Instituto Inhotim (Rua B, 20, em Brumadinho) até 16 de julho de 2023. De quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30. Entrada: R$ 50 a inteira (meia-entrada válida para estudantes identificados, maiores de 60 anos e parceiros). Crianças de até 5 anos não pagam entrada. Informações: www.inhotim.org.br

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