Jornal Estado de Minas

CRÍTICA

Chico Buarque e Mônica Salmaso retomam tempo da delicadeza em show

João Pessoa - Contra fel, moléstia, crime, corações mesquinhos e outros males das tortuosas trilhas do Brasil contemporâneo, que tal um samba? E um samba a dois? Essa é a proposta de Chico Buarque em sua nova turnê, iniciada na noite desta terça-feira (6/9) no Teatro Pedra do Reino, em João Pessoa (PB). Com a participação da cantora paulistana Mônica Salmaso, Chico nos convida a "espantar o tempo feio, um desafogo e um devaneio" durante duas horas. Após 33 músicas, entrega mais do que promete na letra da música que batiza a excursão: não há apenas um samba. São muitos. Tem também blues, bossa, valsa, cantiga, baião. Há, claro, momentos de contundência. Prevalecem, contudo, os duetos de enlevo, picardia, nostalgia, imaginação. Sozinhos e juntos no palco, Chico e Mônica devolvem ao tempo a delicadeza. 



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O convite ao samba para aliviar a dureza concreta cotidiana não é novidade na obra de Chico Buarque de Hollanda. Em 1966, ele já avisava que "com o samba eu não compro briga, do samba não abro mão".  Mesmo sem saber como seria o amanhã, do alto dos 20 anos de idade, ele garantia: "Vem que passa teu sofrer, se todo mundo sambasse seria tão fácil viver." Mas, nos dias desleais que o país atravessa, o recado foi reforçado a partir da música que dá nome à primeira turnê depois de cinco anos e propõe "puxar um samba" capaz de "alegrar o dia, zerar o jogo, desmantelar a força bruta".   

Último dos grandes nomes da MPB a voltar a fazer shows depois do controle da pandemia, Chico Buarque escolheu a Paraíba, estado natal do parceiro Sivuca (homenageado no segundo bis com "João e Maria"), para o pontapé inicial de "Que tal um samba?". As cortinas se abrem pouco depois das 21h e, para surpresa dos fãs emocionados do cantor, Mônica Salmaso aparece sozinha no centro do palco. Volta ao século passado para lembrar que, se estamos todos no mesmo barco, "não há nada a temer".
 
Em "Todos juntos", da trilha do musical "Os saltimbancos", ela enfatiza os versos "E mais dia menos dia a lei da selva vai mudar". Inicia, assim, o envio de recados à situação social e política do país, mas sem citação de nomes. Deixa ao público a tarefa de vestir a carapuça em quem ele achar mais conveniente. Os gritos de protesto antes e depois do show, além do L que o cantor faz com os dedos ao receber uma toalha com a face do candidato petista à presidência, explicitam o lado escolhido.

O triunfo do sorriso

Mas "Que tal um samba?", o show, vai além da conjuntura política. Parece se concentrar em uma questão que transcende governantes e governados: o triunfo do sorriso. Afinal, ainda mais depois de uma pandemia, "é melhor ser alegre do que ser triste", como garante Vinicius de Moraes em "Samba da bênção", citado na parte final do show. E, se ainda ronda a ameaça descrita em "Passaredo" ("Toma cuidado que o homem vem aí"), acentuada pela iluminação vermelho-sangue de Maneco Quinderé, é preciso acreditar na possibilidade de "Bom tempo", outro dos cinco números que a cantora faz ainda sem o seu anfitrião. O mais notável dos números iniciais é o mais difícil: "Beatriz", com as notas mais altas que um arranha-céu, arranca aplausos em cena aberta. 



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O tom algo solene de uma das três parcerias com Edu Lobo presentes no repertório dá lugar, então, ao despojamento da entrada de Chico para os versos finais de "Paratodos". "Sou um artista brasileiro", anuncia, iniciando com a intérprete uma jornada às raízes do país ("O velho Francisco", "Sinhá") e aos duetos do próprio passado, da intensidade de "Sem fantasia" (que Chico dividiu com Maria Bethânia em disco ao vivo de 1975) à gaiatice sincopada de "Biscate" (originalmente gravada com Gal Costa). 

Diante de referências tão fortes, Salmaso percorre caminho próprio. Alia à técnica impecável uma certa brejeirice. Com respeito e com afeto, parece ciosa do que ela representa neste show - as vozes que cantam as músicas do dono de uma das vozes poéticas mais celebradas da MPB. Não é pouco. Imagina dividir o palco com Chico Buarque? Sonho impossível de nove entre dez cantoras brasileiras. Para Salmaso, que tantas vezes cantou Chico em lives e tem um disco inteiro de releituras do compositor, "Que tal um samba?" é sonho realizado.  


A sós com as fãs 

Mônica Salmaso deixa o palco e, ainda que ladeado por músicos tão tarimbados quanto discretos, Chico parece estar a sós com elas, as fãs. Porque o tempo vai, o tempo vem, roda num instante e lá estão "Samba do grande amor" e "Futuros amantes" a provocar suspiros, cantadas em uníssono pelo público predominantemente feminino. Os outros homens no teatro nos sentimos invisíveis, quiçá intrusos, ao testemunhar a íntima cumplicidade de Chico e suas almas gêmeas, de súbito bandidas, soltas na vida com os versos provocativos de "Sob medida". 

Sabemos que "As minhas meninas" homenageia as filhas do cantor e as notas musicais, mas mulheres de todas as idades se sentem um pouco representadas nesta e em outras composições. São as que combinam dois trunfos da obra de Chico Buarque: a alteridade e a perenidade. Nelas, observamos "o tempo meio que girando em falso, meio que transcorrendo sempre no presente, meio que sendo um gerúndio", como está escrito em "O sítio", um dos melhores contos de "Anos de chumbo" (2021), o mais recente livro do vencedor do Prêmio Camões.




 
Nas duas horas de sucessivos gerúndios, a gente vai levando uma surpresa a cada resgate pouco óbvio (a setlist está longe de uma compilação de sucessos), vai se divertindo com a inserção de uma história real de fake news em "Bancarrota blues", vai se arrepiando com a conversa da mãe de "Meu guri" com a gente insana que vocifera em "As caravanas". Um diálogo reforçado pela inclusão de "Deus lhe pague", talvez o momento mais catártico de um show sem a explosão provocada por "Geni e o zepelim", na turnê anterior. Mas que percorre todos os sentimentos e os transforma um só sentimento: empatia. E empatia, sabemos, é quase amor.

Não há "Apesar de você", "Quem te viu, quem te vê" ou "Vai passar" no repertório de "Que tal um samba?".  Mesmo que Mônica Salmaso realce versos como "Um dia ele vai embora pra nunca mais voltar" no bis dedicado a Miúcha, Chico Buarque parece mais interessado em olhar, simultaneamente, para trás e para a frente. Tenta enxergar a possibilidade de um outro tempo. Como o próprio Chico cantou, há exatos 50 anos, em plena ditadura militar, ao responder aos que o ofendiam "humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar", na música-tema do filme de Cacá Diegues: "Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar, tô me guardando pra quando o carnaval chegar."
 
A alegria, tantas vezes adiada, contagia a despedida. A lembrança festiva de "Noite dos mascarados", com a aproximação dos cantores e do público sem as máscaras outrora exigidas pela pandemia, é a senha da certeza. Amanhã tudo volta ao normal, deixa o dia raiar. E, se não for assim, seja o que Deus quiser.
 

“QUE TAL UM SAMBA?”

A turnê chega a Natal (RN), nesta sexta e sábado (9 e 10/9). Percorrerá 11 cidades até abril de 2023. BH recebe quatro shows, de 6 a 9/10, no Minascentro, com ingressos já esgotados.