Jornal Estado de Minas

NETOS DO CLUBE

Jovens músicos mineiros contam como lidam com a herança do Clube da Esquina

Lançado em 1972, o disco "Clube da Esquina", idealizado por Milton Nascimento em parceria com Lô Borges, é um dos maiores clássicos da música brasileira. Uma das provas disso é o quanto ele influencia a nova geração de músicos mineiros 50 anos depois.




 
Haroldo Bontempo, cantor, compositor e integrante da banda Mineiros da Lua, conta que começou a se interessar pelo "Clube" depois que a banda goiana Boogarins o citou como uma de suas principais referências em uma entrevista. Alguns anos mais tarde, ele lançou seu primeiro projeto solo, o single duplo "De volta a BH", cujo lado B se chama justamente "Virando a esquina".
 
"Ela é 100% inspirada no 'Clube da Esquina'", ele afirma. "Até convidei o Luca Noacco para participar. Ele também é muito fã do 'Clube' e a gente fez uma loucura. É uma música instrumental com algumas voca- lizações."
 
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Para o músico, de 24 anos, uma das características mais notáveis das canções feitas pelo Clube da Esquina é algo que ele define como a "visceralidade das letras".




 
"Eles têm letras que criam metáforas muito bonitas sobre sentimentos. Isso é uma coisa que eu gosto demais e algo que eu identifico, por exemplo, na Geração Perdida de Minas Gerais", afirma Haroldo, citando o selo e coletivo de artistas mineiros.

AMIZADE

Mas a influência vai além da música. Segundo o músico, o Clube da Esquina é um exemplo de como a amizade pode ser um diferencial para a criação conjunta de uma obra artística.
"Eu sei bem a diferença entre fazer música sozinho e fazer com amigos. Quando dois artistas se juntam para produzir, eles podem fazer uma arte boa. Mas quando dois amigos fazem esse movimento, eles criam uma obra espiritual. Talvez não seja bonita artística ou tecnicamente refinada, mas disso sai uma coisa extremamente especial", afirma.




 
A forma como o Clube da Esquina se organizou também chama a atenção da cantora, compositora e multi-instrumentista Nath Rodrigues. Para ela, o coletivo de amigos que se reuniu nos anos 1960 em Belo Horizonte é um exemplo, principalmente para a cena independente da cidade.
 

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"Eles tinham uma relação muito próxima com a cidade. O meu trabalho tem muito a ver com isso, surge nesse contexto. E eu entendo que eles começaram a se consolidar a partir da conformação com a cidade e isso influenciou muito a forma como os artistas de hoje se organizam, por exemplo, por meio de coletivos", diz.
 
Nascida em Sabará, a artista de 31 anos não sabe dizer exatamente quando foi a primeira vez que ouviu o disco "Clube da Esquina", mas garante que foi pelo rádio, que sempre estava ligado em casa. Quando se mudou para BH, em 2011, para estudar música na Uemg, ela se deu conta da importância não só do disco, como de todo o movimento em torno do Clube da Esquina.




 
"Acredito que eles tenham tornado a música mineira reconhecível, criando uma marca registrada. Para além do sotaque, as harmonias mais progressivas são muito características e saem do pop que estava mais no inconsciente das pessoas quando o Clube nasceu", afirma Nath.

MANEIRA ÚNICA

Ela também destaca as composições. "São músicas que falam de coisas corriqueiras de uma maneira muito única. Eu acredito que esse seja o legado deles. É um jeito de falar sobre as questões da vida, transformando isso em sabedoria."
 
Nath Rodrigues afirma que seu trabalho autoral tem uma influência indireta do Clube da Esquina. "Tive uma formação como instrumentista, então eu acredito que tudo o que eu escuto vira material de trabalho e ferramenta de construção possível. Mas acredito que, quando eu crio uma música com uma pegada mântrica, ou na letra ou no violão, vejo isso na obra do Clube."
 
Mineiro da cidade de Diamantina radicado em São Paulo, o cantor e compositor César Lacerda, de 34 anos, enxerga o disco "Clube da Esquina" como um marco da música brasileira em termos técnicos.




"Do ponto de vista da engenharia de áudio, é um trabalho muito importante. Foi um disco muito bem gravado, e que fez o uso de frequências de forma muito inovadora", ele afirma.
 
Além disso, Lacerda considera que o disco inaugurou a música mineira como a conhecemos hoje de forma espontânea. "A Tropicália tinha um manifesto. Alceu Valença lutava pelo reconhecimento da música nordestina. E o Clube da Esquina criou algo que não era panfletário, mas se firmou como a identidade da música produzida em Minas Gerais."
 

HORIZONTE ABERTO 

A primeira vez que César Lacerda ouviu "Clube da Esquina" foi aos 15 anos. Naquela época, ele morava em um prédio e um dos vizinhos era beatlemaníaco. "Eu adorava rock progressivo e esse meu vizinho disse que eu tinha que conhecer a música brasileira desse tipo", ele conta.
"Na minha cabeça, a música brasileira era samba, no mais estereotipado dos sentidos. Quando ouvi o 'Clube da Esquina', o meu horizonte de possibilidades se abriu. Lembro-me da força daquela capa, o fato de ser um disco duplo. Tudo isso me marcou muito", diz.




 
Ele define como "profunda" a influência do Clube da Esquina em seus trabalhos autorais. "Ele está presente no jeito de compor, na hora de pensar o arranjo e também no desejo de conseguir fazer a melhor gravação possível. Eu também tenho uma coisa do cantor homem que faz uso do falsete e a primeira vez que eu atentei para isso foi com Milton."
 
Já Matheus Bragança, de 28, músico integrante d'A Outra Banda da Lua, observa que é "difícil que um disco do calibre do 'Clube da Esquina' não tenha uma influência ampla na música mundial".
O artista mineiro afirma que o Clube da Esquina foi fundamental para que ele se tornasse músico. "Eu cresci ouvindo os discos, principalmente por conta dos meus pais, que eram muito fãs. Então, eu diria que, sem o Clube, talvez eu não tivesse vontade de seguir uma carreira musical."




 
Para ele, seu grupo musical formado em Montes Claros se inspira no Clube da Esquina mais na forma do que no conteúdo. "Também somos um coletivo de pessoas que se juntam para fazer criações. Todo mundo tem uma função pouco definida e faz de tudo."
 
Além disso, Matheus reconhece que sua banda e o Clube da Esquina compartilham da mesma vontade de beber em fontes diversas para produzir música. "É esse movimento de absorver todo tipo de referência para fazer uma criação autoral", ele afirma.