Jornal Estado de Minas

VIOLÊNCIA NAS REDES

Os ataques a Marina Sena e o impacto dos discursos de ódio sobre as artes

Os ataques de ódio nas redes sociais contra a cantora mineira Marina Sena, vencedora de três prêmios Multishow – Revelação, Capa do ano e Experimente –, reacenderam o debate na indústria musical sobre o impacto de ofensas nas redes sociais sobre a carreira de artistas, principalmente mulheres, alvos recorrentes de comentários machistas e preconceituosos. Casos como o de Marina Sena, Luísa Sonza e Taylor Swift refletem, segundo psicólogos, a sensação de impunidade que muitos usuários têm ao agredir e mesmo cometer crimes no ambiente virtual.





E as consequências desses discursos de ódio vão muito além de perfis em redes sociais desativados, como ocorreu com a conta no Instagram de Marina Sena. Ondas de ataques de ódio, que em alguns casos ultrapassam o ambiente virtual e se tornam ameaças reais, têm obrigado artistas a fazer pausas inesperadas em suas carreiras, adiarem lançamentos de álbuns ou mesmo mudar de país por medo de agressões físicas.

Os ataques de ódio a uma pessoa pública estão diretamente relacionados ao comportamento humano no ambiente virtual e à ação derivada do sentimento de raiva, como explica a psicóloga Renata Borja, especialista em terapia cognitivo comportamental e mestre em relações interculturais.

Sensação de impunidade

“O seu perfil dá essa sensação de que você está dentro da sua intimidade e que você pode fazer o que você quiser. “É como: ‘ah, eu estou conversando com meu amigo, então eu vou falar’, mas se esquece é um comentário público”. Assim, o virtual cria essa sensação de impunidade e o usuário age sem medir as ações no outro e nele mesmo.





A psicóloga explica que sentir raiva é normal, assim como sentir felicidade, dor, etc. O sentimento é derivado de uma sensação “de prejuízo, desrespeito, de estar sendo enganado, agredido ou violado de alguma forma”. Assim, a raiva está ligada à moralidade e às opiniões de uma pessoa.

Raiva e agressividade são diferentes

Mas agressividade e raiva não são a mesma coisa. A raiva pode ser externalizada em outros tipos de comportamento, como justificar. Mahatma Gandhi, que segundo Renata era um “raivoso típico”, reagia ao ataque de uma forma gentil ao outro. Entretanto, há o estigma de que para “tirar sua raiva para fora, você tem que agredir o outro”. “Como o pensamento dele é diferente, ele se sentiu confrontado com o meu pensamento e no direito e me dizer que meu pensamento está errado”, explica a psicóloga.

Os ataques são intensificados com a sensação de impunidade e privacidade do virtual. “No convívio social, você não sai por aí agredindo as pessoas. Mas o ambiente digital dá quase que uma ‘autorização’ para esse tipo de comportamento”. E, nele, os ataques de ódio nunca são sozinhos. Isso porque o virtual aproxima as pessoas com os mesmos pensamentos e criam ‘bolhas’ sociais que provocam o sentimento de “pertencimento”.





Assim, caso alguém fosse atacar um artista sozinho, poderia sentir vergonha ou até mesmo a sensação de “não estar amparado”. Mas, em grupo, a pessoa se sente apoiada a seguir aquele comportamento.

Este fenômeno de “união pelo ódio” é muito visto na cultura do cancelamento. “As pessoas querem estar na parte da maioria. Se as pessoas estão naquele grupo ‘superior’, eu busco estar naquela parte. E essa é uma noção muito presente nas pessoas que fazem bullying”, explica a comunicóloga e pesquisadora de comportamento Clara Fagundes. 



Após a desativação de seu perfil no Instagram, em 13/12, Marina Sena postou uma carta aberta no Twitter e desabafou sobre os comentários e ataques de ódio on-line. “O que estão fazendo não é apenas dando suas opiniões, o que estão fazendo é bullying e isso é muito sério”, comentou. “Tô triste, por mim, por todas as pessoas que passam por isso, mas tô muito mais triste por saber que é esse o mundo em que a gente vive, de pessoas tão ruins”.





Ódio ao sucesso feminino 

O trabalho feminino é mais questionado e desvalorizado em comparação ao masculino. “Esse julgamento não ocorre com homens, pois há tantos homens no poder. Então, ele não precisa ser excepcional, pois há vários outros. Mas quando tem uma mulher, a gente sempre pergunta o que ela tem de especial para estar naquele lugar”, comenta.

Sobre os ataques a Marina Sena, Clara comenta que o fato dela ter vencido o prêmio concorrendo contra um homem, o cantor João Gomes, acentuou essa repulsa ao sucesso feminino. “A música dela viralizou este ano e está em todo lugar. Mas, quando surge essa comparação com um homem que está fazendo sucesso, tem a sensação de que ‘ela não merece tanto quanto ele’. Ela até pode merecer em algum nível, mas não mais do que ele. Ela está ocupando um lugar que não é dela”, argumenta Clara.

Marina chegou a usar seu perfil no Twitter para comentar as dificuldades de ser mulher na indústria do entretenimento. “Você começa a crescer e as pessoas já colocam o mérito das suas conquistas em algo que não é você”, escreveu a cantora em 11/12. 







Além do sucesso feminino, o discurso e a aparência física também são aspectos que provocam a sociedade machista. “Quanfo mais longe de um padrão que as pessoas acham que ideal, maior é o ódio. Então, se é uma mulher gorda, ela recebe mais ódio que uma mulher magra. Se ela é negra ou nordestina, causa mais estranheza e ódio por elas estarem ocupando locais que elas não deveriam estar”, explica Clara.

O discurso das músicas e performances, como de Luísa Sonza e Marina Sena que abordam o feminismo e liberdade sexual feminina, também pode ser pontuado como algo que incomoda o pensamento machista. “Se o que eu escrevo, não incomoda alguma pessoa. Então está errado. É importante que as mulheres continuem falando, mesmo que incomode. Porque, assim, o pensamento vai mudar”, comenta a comunicóloga que citou a sua experiência como pessoa pública.


 

Consequências da violência on-line

A psicóloga Renata Borja explica que esses ataques on-line de ódio provocam consequências em vários âmbitos da vida da pessoa atacada, mas que cada um sente e reage aos ataques de um jeito diferente devido às crenças, personalidade e outros fatores que nos tornam únicos. “Situações difíceis e traumáticas causam uma situação estressante, em que você entende que pode perder algo que valoriza. Então, a sua vulnerabilidade está elevada, e, assim, causa o adoecimento”.





Os ataques a Luísa Sonza

Desde o início de sua carreira, a cantora e compositora Luísa Sonza recebe mensagens de ódio e críticas não-construtivas. As principais pautas de linchamento envolvem sua aparência, suas letras, roupas e, principalmente, seus relacionamentos amorosos.

Os ataques a Luísa Sonza aumentaram após o divórcio com o humorista Whindersson Nunes e um boato de uma suposta traição por parte da compositora. Assim que a voz de “Braba” assumiu o namoro com o cantor Vitão, as agressões ultrapassaram o virtual.

“Fui viver uma outra realidade”

No fim de junho de 2021, Luísa adiou o lançamento do seu segundo álbum de estúdio e anunciou uma pausa nas redes sociais. Na época, a cantora começou a receber ameaças de morte após a morte do filho recém-nascido de seu ex-marido, João Miguel. Além disso, a artista e Vitão recebiam ataques verbais nas ruas. Por isso, o casal se isolou por 15 dias no México. 





“Foi uma fuga, me fez muito bem, mas eu não estava lidando com a situação em si, estava fugindo. Precisei desse tempo, praticamente fui viver uma outra realidade, não queria voltar”, contou Luísa em entrevista à revista J.P. Na mesma reportagem, a cantora revelou que faz uso de ansiolíticos e antidepressivos e tem acompanhamento psicológico para lidar com as agressões.



O ódio coletivo se tornou a principal pauta do álbum DOCE 22. No primeiro verso da canção “Intere$$eira”, faixa que abre o disco, Luísa canta as três palavras que mais usaram para ofendê-la durante sua carreira: p*ta, vagabunda, interesseira. A cantora relatou no Spotify Storylife, ferramenta de vídeos sobre artistas criada pela empresa de streaming de música, que foi libertador se apoderar dessas palavras e ressignificá-las. 

“Confesso, não é fácil ser braba todo dia”

Apesar de serem duas artistas em ascensão e com grande destaque na mídia, a arte de Luísa e Marina, em algumas vezes, é ofuscada por sua vida pessoal e fica em segundo plano. Este tratamento de desvalorização da arte e superexposição da vida pessoal, em tom de julgamento e linchamento, é recorrente entre mulheres na industria da música.





Em novembro, a popstar Anitta foi ao Twitter comentar sobre a falta de reconhecimento de seu trabalho, apesar de ser um dos maiores nomes da música brasileira atualmente. A cantora participou do programa de entrevista The Late Late Show with James Corden, que é um dos mais populares dos Estados Unidos, e apresentou uma performance da música “Faking love”. Mas, a participação da ‘poderosa’ não rendeu tantos comentários e mídias quanto suas polêmicas.



“Ontem eu fui a primeira brasileira a cantar e dar entrevista num dos maiores programas dos EUA. Hoje tem meia dúzia de gato pingado postando sobre isso no meu país (que são os meus amigos, no caso). Isso não me intrigava tanto se não fosse um porém: se ontem, ao invés de ter sido a primeira brasileira nesse programa, eu tivesse envolvida em alguma fofoquinha eu tido alguma atitude que desagradou alguém, isso teria se tornado a maior manchete do país. Comentado e postado por tudo e todos. Isso não é curioso?”

“Inclusive tem mais chances desses Tweets viralizarem do que minha própria apresentação em si”, completou.

Os ataques a Marina Sena

O perfil no Instagram da cantora mineira Marina Sena foi desativado. Sem uma explicação da plataforma social, a queda da conta foi associada pela artista ao crescente ódio que Marina recebeu nas redes sociais desde que venceu o Prêmio Multishow.





Com 7 anos de carreira e passagem por duas bandas mineiras, Marina Sena, nascida em Taiobeiras, no Norte de Minas Gerais, alcançou fama nacional em carreira solo neste ano com a música “Por supuesto”. O hit viralizou na plataforma TikTok e faz parte do álbum “De primeira”.



Os ataques de ódio sofridos por Marina Sena mesmo antes da entrega dos prêmios apontavam de forma negativa e depreciativa aspectos artísticos da cantora, principalmente sua voz, mas também houve ofensas à aparência de Marina. “Vocês não vão me desencorajar de fazer meu trabalho, não adianta tentar”, escreveu a cantora no Twitter em novembro. 

*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Alves