Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Com o álbum 'Anga', Nelson D promove uma virada em sua carreira


Desde 2020, ano em que lançou o disco de estreia, "Em sua própria terra", o artista indígena Nelson D tem procurado desvincular-se da figura de produtor musical que conquistou ao trabalhar com artistas como Gloria Groove, Linn da Quebrada e Tássia Reis.





Em seu novo álbum, "Anga", lançado na última sexta-feira (27/08) pelo selo Balaclava Records, ele aprofunda a busca por uma identidade musical própria que transita entre o trip-hop, a música eletrônica e a ancestralidade indígena.

"Não quero mais ser considerado produtor. Apesar de ter sido uma fase muito importante na minha vida, em que aprendi muito, sinto a necessidade de lidar com meu trabalho autoral mais diretamente. Até para eu me sentir realizado e criar uma marca própria", afirma.

Essa busca está traduzida no título do trabalho. Anga significa alma no idioma indígena nheengatu. "É um conceito muito direto e transparente", diz Nelson D. "Esse disco foi feito durante o período da pandemia, um momento muito triste, incerto e inseguro. Busquei traduzir nele força e sinceridade."




 
REFERÊNCIAS 
Na busca por encontrar a si mesmo artisticamente, Nelson D espelha-se em referências da música internacional, como Massive Attack, Chemical Brothers e Sonic Youth. Nessa lista, também há espaço para artistas novos ,como o norte-americano Yves Tumor, a banda escocesa Young Fathers e o grupo nova-iorquino Son Lux.

"Busco inspiração em artistas que conseguiram encontrar a própria identidade e, ao mesmo tempo, são difíceis de classificar. Eu os tenho como referência porque sei que seus trabalhos têm personalidade e são extremamente autênticos."

Esses mesmos adjetivos servem para o trabalho de Nelson D. Toda a sua produção até aqui é marcada pela aproximação entre diferentes vertentes da música eletrônica associadas ao rock, que se encontram na ancestralidade indígena.





Com 12 músicas distribuídas em pouco mais de 43 minutos, "Anga" conta com canções em nheengatu, como é o caso de "IAPOTISAWA", "Yasú Kaá Kití", "Yuypara" e "Ruka". O artista também canta em português, nas faixas "Aldeia neon", "O que dia que a pele sumiu", "Nossa flecha" e "Fumaça de cachimbo".

Para ele, a composição das letras não é um trabalho simples e requer tempo e concentração. "É preciso saber o que a música pede. Primeiro eu crio o instrumental e depois penso na letra", conta.

ORFANATO 
Essa barreira linguística que ele atravessa enquanto produz pode ser explicada por sua história de vida. Nelson D nasceu em Manaus e passou oito meses de sua vida em um orfanato. Adotado por um casal de italianos, ele cresceu em Savona, na Itália, onde foi batizado como Davide De Merra. Apesar de ter crescido no país europeu e até mesmo cursado artes plásticas em Milão, ele mora no Brasil desde 2010, quando começou a trabalhar com música profissionalmente.





Agora com 35 anos e radicado em São Paulo, ele usa um nome artístico em referência às suas origens. Nelson era o nome que ele recebeu no orfanato, enquanto D remete ao seu nome de batismo.

No Brasil, ele restabeleceu contato com a própria ancestralidade e origem para criar um trabalho que pode ser classificado como uma obra indígena futurista brasileira. Além das letras e da sonoridade, ele também aborda isso visualmente.

A capa de “Anga”, cujo design o próprio Nelson D assina, é uma referência a um mito do povo indígena Nambikwara. "É a história de uma mulher muito velha. As outras pessoas não gostavam dela, e ela vivia na solidão. O único ser vivo que tinha compaixão por ela era uma cobra. Sempre fiquei intrigado com essa história, e a capa é a minha interpretação antropomorfa dessa cobra. Imaginei um personagem com aspecto monstruoso, feroz e letal, mas capaz de um ato de afeto e empatia únicos", explica.

Ao longo da última semana, Nelson D acompanhou apreensivo as manifestações de indígenas de várias regiões do país, em Brasília, contra medidas que dificultam a demarcação de terras e incentivam atividades de garimpo. Para ele, o chamado "marco temporal", segundo o qual indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam até 1988, é "uma vergonha e um crime humanitário".




"Os povos indígenas sempre viveram na invisibilidade. Ninguém está se importando com o que realmente está em jogo. Por isso nós estamos utilizando outros tipos de meio de comunicação para alertar a humanidade e o povo brasileiro. Essa é uma causa muito complexa e importante para toda a humanidade. O ser humano precisa entender que, se acaba a floresta amazônica, acaba o ser humano também."

“ANGA’
.Nelson D
.12 músicas
.Balaclava Records
.Disponível nas plataformas digitais


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