Estado de Minas

Do antigo Arraial do Curral del-Rey à atual BH metrópole

Com 2,5 milhões de moradores, a capital mineira enfrenta os desafios dos grandes centros urbanos, sem perder encantos


postado em 12/12/2018 06:00 / atualizado em 12/12/2018 14:44

Largo da Matriz da Boa Viagem, no povoado do Arraial do Curral del-Rey no fim do século 19(foto: Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto)
Largo da Matriz da Boa Viagem, no povoado do Arraial do Curral del-Rey no fim do século 19 (foto: Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto)

Não é de hoje que o taxista Daniel Viana, de 71 anos, trafega por Belo Horizonte, a primeira cidade planejada do Brasil e em plena comemoração de seus 121 anos. “Conheço a capital por cima e por baixo”, afirma com seriedade o mineiro natural de Aimorés, na Região Leste, que chegou aqui há cinco décadas e, em 24 de agosto de 1970, recebeu a carteira do sindicato da categoria para trabalhar, no início conduzindo um veículo Volkswagen de quatro portas, 1969, vermelho, modelo apelidado Zé do Caixão. Ele ri discretamente da lembrança e destaca que, através dos vidros das janelas laterais e do para-brisa, viu a capital se transformar. “Estou há 48 anos na mesma profissão. Em BH, ganhei o sustento para me estabelecer, me casar com uma moça da terra e criar uma linda família. São três filhas formadas e sete netos”, conta o taxista cheio de energia e conhecimento.

Neste dia de festa para os belo-horizontinos da gema e “de coração”, a exemplo do taxista, o Estado de Minas segue com as celebrações de seus 90 anos de história – o primeiro exemplar circulou em 7 de março de 1928 –, desta vez com um caderno especial sobre o passado e o presente da capital e as expectativas para os próximos anos, passando pelos desafios na palavra de especialistas. De repente, ao parar no sinal, Daniel olha no retrovisor do tempo. “Quando falo ‘por baixo’ é porque já vi fazerem muitos buracos nas ruas e avenidas, uns para passar tubulação de água, outros cabos de telefonia, enfim, furaram de todo lado. Já ‘por cima’, foi a partir da década de 1970 que tudo mudou.”

A bordo de seu táxi moderno, bem diferente do Zé do Caixão, Daniel vê avanços e atrasos na condução da metrópole de cerca de 2,5 milhões de habitantes. “A evolução transcorreu lentamente, as obras públicas deixam a desejar. Poderíamos ter mais linhas de metrô, viadutos e túneis para desafogar o trânsito e resolver os gargalos da mobilidade urbana.” De braços e olhos abertos, na Praça do Papa, na Região Centro-Sul de BH, Daniel afirma que não existe lugar mais bonito. “Veja a Serra do Curral”, aponta. Motivo de orgulho também para ele é a Pampulha, que recebeu o título de Patrimônio e Paisagem Cultural da Humanidade. “Espero que atraia mais turistas.”

Ninguém pode tirar a razão do taxista: conforme dados mais recentes do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), BH se tornou a capital brasileira com maior número de carros por habitante, superando a barreira dos 2 milhões. “Mas teve soluções importantes, como a canalização do Ribeirão Arrudas. Na época das chuvas, transbordava e as águas tampavam a Rua da Bahia”, diz Daniel, sempre preocupado com o aumento da violência e da mendicância nas ruas. Tem razão novamente: os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o número de brasileiros em situação de pobreza aumentou em 2 milhões em um ano, chegando em 2017 a 54,8 milhões de pessoas. No conceito de extrema pobreza, já são 15,2 milhões, número que aumentou em 13% no país. BH segue a tendência nacional.

Capitais inchadas, trânsito ruim

O diretor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maurício José Laguardia Campomori, com especialização também em urbanismo e educação, explica que BH enfrenta uma série de desafios e grande parte dos problemas decorre das desigualdades econômicas e sociais. A situação complexa é similar à das metrópoles latino-americanas, com grande parte da população concentrada nas periferias e obrigada a se deslocar para as regiões centrais em busca de trabalho e oportunidades. “As capitais incharam nos últimos 50 anos e não atendem às demandas da população com velocidade e qualidade”, diz Maurício José.

Como a Região Central de BH abriga a maior parte dos serviços, o morador tem no transporte público um gargalo. “Um grande problema é que ele é caro para as pessoas de poucos recursos. O pior ainda está no trânsito, cada vez com maior indução ao caráter individual e menos coletivo.” Na avaliação do arquiteto e urbanista, as soluções modais são bem-vindas, para que a capital não se torne inviável quanto São Paulo (SP), por exemplo. “Precisamos de uma cidade mais humanizada. O Move foi um alívio, agora podemos investir no transporte ferroviário e na ampliação do metrô de superfície.”

Para a presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/Minas Gerais), Rose Guedes, a participação da comunidade é fundamental. “A população de BH deveria contribuir de forma mais ativa para a solução e o não agravamento dos problemas da cidade, sem esperar que o poder público seja capaz de resolvê-los sozinho. Claro que o processo de mobilização e conscientização deve partir das autoridades, mas nota-se que muito a população pode fazer. Um exemplo está na disposição correta de lixos e entulhos, para que, na época das chuvas, os resíduos não sejam levados para a rede de drenagem e, assim, evitem alagamentos.”

Com os olhos no retrovisor

Nesta data comemorativa do aniversário, é importante saber um pouco mais sobre os primórdios da capital, inaugurada em 12 de dezembro de 1897, com o nome de Cidade de Minas, e batizada Belo Horizonte – na grafia antiga, Bello Horisonte –, em 11 de agosto de 1901. Hoje, há pesquisas arqueológicas sobre a pré-história da região, cerca de mil anos antes do Arraial do Curral del-Rei, o povoado colonial varrido do mapa para construção da nova capital dos mineiros.

Para o escritor Augusto de Lima Júnior (1889-1970), a primazia de chegar à região seria do português Francisco Homem del- Rei, que desembarcara na colônia no princípio do século 18, na frota do capitão-mor Luiz de Figueiredo Monterroyo, e resolvera trilhar mais tarde o caminho das Gerais em busca de ouro. Naqueles tempos, havia por aqui apenas a Fazenda do Cercado, onde hoje fica o Bairro Nova Cintra, na Região Oeste, e, sendo devoto de Nossa Senhora da Boa Viagem, Francisco se apressara em construir uma capela em devoção à santa. O templo, onde hoje está a Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem, foi construído seis quilômetros distante do Cercado.

Mas há os defensores do pioneirismo do bandeirante paulista João Leite da Silva Ortiz (nascido em 1674), que recebeu sesmarias, no começo do século 18, e fundou a Fazenda do Cercado. Mais tarde, a propriedade se tornava Arraial do Curral del-Rei e, posteriormente (1714), Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del-Rei. Mas logo em seguida à Proclamação da República (1889), quando João Pinheiro (1860-1908) presidia o estado, é que surge pela primeira vez o nome Belo Horizonte, mais especificamente Arraial de Belo Horizonte.

A ideia de mudança da capital existia desde meados do século 19, sendo que a região mais indicada pela comissão de escolha das localidades foi a Várzea do Marçal, em São João del-Rei, no Campo das Vertentes. “Existia um relatório preliminar favorável à região do Curral Del-Rei, mas antes dessa comissão, desde o Império, temos indícios da vontade de mudar o local da capital”, explica o historiador Yuri Mello Mesquita.

A cada dia, aumentava a expectativa dos mineiros e a rixa entre “mudancistas” e “antimudancistas”. No Legislativo, chamado de Congresso Mineiro, ocorreu uma verdadeira briga de foice, pois a transferência representava uma nova geopolítica do estado e nova relação de forças entre os grupos oligárquicos mineiros.

Toda a polêmica envolvendo a transferência da capital está presente no livro Ciclones e Macaréus – O Parlamento na história de Belo Horizonte, de Guilherme Nunes Avelar Neto. Com 928 páginas e publicado pela Câmara Municipal, a obra traz os debates inflamados envolvendo a questão, fotos e revela os bastidores da mudança da nova capital.

Em 1893, pela Lei 3, adicional à Constituição de 7 de setembro daquele ano, o Arraial de Belo Horizonte é escolhido e, um ano depois, cria-se a Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), pelo Decreto 680, cuja chefia foi confiada ao engenheiro paraense Aarão Reis. Inicia-se, então, a construção da nova capital de Minas. Curiosamente, a confusão de nomes perdura por algum tempo. No Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, é possível ver a planta geral “da Cidade de Minas sobre a planta geodésica, topographica (sic) e cadastral de Bello Horisonte”. O dois nomes estão no mesmo papel. O documento é datado de 15 de abril de 1895. Já a Lei 302, de 1º de julho de 1901, que retorna com o nome de Belo Horizonte, e cujo original está no Arquivo Público Mineiro, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura, foi sancionada pelo então presidente de Minas, Francisco Silviano de Almeida Brandão (1848-1902), na Cidade de Minas.

 

“A população de BH deveria contribuir de forma mais ativa para a solução e o não agravamento dos problemas da cidade, sem esperar que o poder público seja capaz de resolvê-los sozinho”

 Rose Guedes, 


Publicidade