Estado de Minas

Como BH transformou muros em telas para se consolidar galeria a céu aberto

No 121º aniversário da capital mineira, ruas viram ateliê para receber as cores do Circuito Urbano de Arte que enfeitam a cidade


postado em 12/12/2018 06:20 / atualizado em 12/12/2018 15:18

(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

A arte ocupou, majoritariamente, galerias, museus e paredes de colecionadores por muitos séculos. A plasticidade de um quadro ficava restrita a quem entrava, nesses espaços, para a fruição. O ato se tornava, inclusive, distinção do saber, expressão de erudição. Ao completar 121 anos, hoje, Belo Horizonte mostra que a relação com a arte pode ser mais democrática. Assim como o sol nasce para todos, uma pintura pode ser apreciada por rico e pobre, letrados ou não. A jovem metrópole ganhou como marcas camadas de cores que nascem da destreza com pincéis ou sprays de artistas urbanos. Telas da dimensão de edifícios, que podem ser vistas de diferentes pontos do Centro, mudaram a paisagem, fazendo com que o movimento de erguer a cabeça do belo-horizontino – ou de quem chega à cidade – não seja apenas para apreciar o horizonte, que, de fato, é belo.

 Olhar para cima virou movimento obrigatório na capital mineira. BH consolidou a vocação para galeria a céu aberto quando acolheu as cores do Circuito Urbano de Arte (Cura). Ao todo, são 10, realizados em três edições – julho e agosto de 2017, dezembro do mesmo ano e novembro deste ano.

 Os murais do Cura começaram a ser pintados na mesma época em que os muros grafitados de São Paulo eram cobertos por tinta cinza, o que projetou a capital mineira nacionalmente como cidade que acolhe a arte urbana. A face visível dessa forma de expressão da arte contemporânea, dada pela altura dos prédios onde estão, reflete o trabalho de artistas urbanos, que escolheram a rua como ateliê e muros como telas. A Bienal de Graffiti (2008), projeto Telas Urbanas (2015), Concurso Gentileza (2017), Museu de Rua (2018), Morro Arte Mural (MaMu) (2018), Território de Arte Urbana (Tau ) (2018), Grafitação e centenas de grafites e “sopas de letrinhas”, por toda a cidade, são exemplos dessa efervescência.

 A curadoria convidou artistas de renome internacional e de destaque na cidade. A mescla tem como objetivo colocar a capital mineira no mapa mundial da arte urbana. Para esta edição, a artista internacional convidada foi a argentina Hyuro, que pintou as empenas do Edifício Amazonas Palace Hotel, na Avenida Amazonas (26,5 metros de largura por 40 metros de altura), com a imagem de um romântico vestido. Dos artistas locais, nomes expressivos como Criola, que levou seu traço para o Edifício Chiquito Lopes, na Rua São Paulo, em empena de 45,5m de altura por 30m de largura; Comum, que pintou o Edifício Satélite, na Rua da Bahia (8,65m de largura por 65,70m de altura); e vários artistas sob a curadoria de Surto e Nica, que deixaram impressas letras no Edifício Satélite, na Rua da Bahia (8,15m de largura por 62,6m de altura).

 Idealizado pelas produtoras Janaína Macruz, Juliana Flores e a artista Priscila Amoni, o Cura preza pelo equilíbrio entre o número de artistas homens e mulheres, artistas locais e internacionais e diversidade de técnicas. Quando começaram a pensar o projeto, em 2015, as produtoras mapearam 26 empenas que poderiam ser vistas da Rua Sapucaí, tornando-se então elegíveis a se converter em telas gigantes.

 O Cura contribui para que a Rua Sapucaí se consolide como um dos mais importantes corredores culturais da cidade. Lunetas foram instaladas na via para contemplação. No entanto, a proposta das idealizadoras é que o projeto possa cobrir empenas de outras regiões. Seguem com o objetivo de pintar mais empenas que possam ser vistas da Sapucaí, mas querem criar outros mirantes de arte na cidade, inclusive fora da Região Centro-Sul. “Muita gente pensa que o Cura é festival da Sapucaí. Até agora estivemos lá. Mas queremos fazer outros circuitos, inclusive no Barreiro e em Venda Nova”, completa Janaína.

 Um olhar que se transforma
 O carro-chefe do festival é a pintura de empenas. No entanto, a ação fomenta a cena cultural da cidade de maneira ampla. “Costumamos dizer que o Cura é um festival com três camadas: a pintura, o mirante e a programação, que inclui debates, aulões e oficinas”, diz Janaína. Durante o festival, cadeiras de praia são colocadas em plena rua para que as pessoas possam acompanhar as cores cobrindo o cinza das empenas. “O mirante começava às 16h, mas durante todo o dia tinha gente lá. Um dia vi pessoas às 4h”, diz Bruno Figueiredo, da Área de Serviço, que fez o registro fotográfico e cinematográfico do Cura para as redes sociais. 

 Não é exagero dizer que a presença dos murais mudou o comportamento dos belo-horizontinos. A pintura da argentina Milu Correch, por exemplo, virou ponto preferido de quem quer mostrar BH em foto, sejam pessoas da cidade ou quem vem visitar. A imagem de duas mulheres dançando, em referência ao feminino, é margeada pelo Viaduto Santa Tereza. De um outro ponto de vista, abraça os emblemáticos arcos do viaduto, símbolo da cultura da cidade, por onde andou Carlos Drummond de Andrade nos anos 1920.

 Fotos do mural viraram imagem de perfil nas redes sociais, de comerciais e até mesmo material promocional de imobiliárias, que anunciam empreendimentos no Centro. “Os murais transformaram tanto nosso olhar quanto o olhar do público para as empenas cegas. As pessoas começaram a sugerir locais para receber os murais”, afirma Juliana. A produtora conta o relato de uma moradora do Centro que tinha vergonha de dizer onde morava para os amigos, por achar que se tratava de uma área em decadência. “Ela se sentia estigmatizada. Depois do Cura, passou a dizer o endereço com mais orgulho. Conta para as pessoas que mora no coração dos murais gigantes”, completa.

 Quando o dia abraça a noite
 Quem olha para os murais do Cura tem panorama da arte urbana, produzida na cidade e no mundo, dada a diversidade de técnicas. O spray é usado, por exemplo, na pintura do abraço do dia com a noite, feita pelo artista Davi Melo Santos, o DMS. “O grafite tem cara da arte de rua”, diz Juliana.

 Novo muralismo ressurge com os trabalhos das artistas Hyuro e Priscila Amoni, que fez, na primeira edição do Cura, a pintura de mulher negra inspirada na ativista Nathália Orleans Barcelo. Entre as técnicas, destaque para a precisão geométrica de Criola, que usa várias demãos de tinta para fazer a composição. Para pintar a empena das letras foram convidados 20 artistas (oito mulheres e 12 homens).

 Os curadores queriam contemplar diversos estilos de caligrafia da arte de rua, como o wildstyle, o piece, o throw up, grapixo e o pixo. O mural dialoga com o trabalho do artista Comum, que usou estêncil (molde vazado no qual se aplica a tinta) para fazer o desenho de um “jeguerê”, expressão na arte urbana que se refere à escada formada por gente. “Com 65 metros de altura, o mural foi um desafio em termos de composição. Tive várias ideias até que cheguei ao jeguerê. É uma imagem que dialoga com a verticalidade e fala de união e cumplicidade entre as pessoas. União para alcançar um bem maior. No final da torre humana, no alto, uma menina pinta uma gaivota”, diz Comum sobre a obra, batizada de Voo.

“Muita gente pensa que o Cura é festival da Sapucaí. Até agora estivemos lá. Mas queremos fazer outros circuitos, inclusive no Barreiro e Venda Nova”
  Janaína Macruz, produtora, uma das idealizadoras do Circuito Urbano de Arte (Cura)
 


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