Estado de Minas

BH 121 anos: uma carta à antiga professora

O jornalista Arnaldo Viana cumpre promessa à mestra do primário, 56 anos depois


postado em 12/12/2018 06:00 / atualizado em 11/12/2018 21:23


Cara professora Maria Ribeiro, espero que esta carta a encontre viva e feliz nos seus 90 e poucos anos. Quando me diplomei em primeiro lugar no quarto ano primário, em Nanuque, a senhora me agraciou com uma lembrancinha e, sabendo que minha família estava de mudança para BH, me fez um pedido: que escrevesse e contasse se a capital era mesmo bonita. Relapso, deixei o tempo passar. Só agora, quase 60 anos depois, o faço, com inevitáveis desculpas.

Desembarquei em BH na manhã de 28 de janeiro de 1962. A cidade, uma senhorinha de 64 anos. Eu, um garoto desajeitado, roupas simples e magro demais nos meus 12 anos. Minha chegada ocorreu exatamente dois meses antes do 34º quarto aniversário do Estado de Minas. O jornal, como os demais do país, noticiava a inquietação da elite política de então com o novo governo cubano. “O comunismo vem aí”, diziam os mais afetados. Era a abertura do caminho para o golpe militar dois anos depois.

Desci do trem, depois de 10 horas de viagem, desde Governador Valadares, na já famosa Praça da Estação. Lembrei-me logo de um texto que a senhora nos deu para ler. Tratava-se de um artigo da professora e historiadora Maria Ignez Arreguy, irmã do também genial João Etienne, no qual a mestra contava que, na Revolução de 1930, que culminou em uma ditadura, o comando da Polícia Militar ordenou aos praças do interior que se apresentassem no quartel do Bairro do Prado.

Os militares chegavam de trem, um dos poucos meios de transporte interestadual da época, se dirigiam aos charretes de plantão na praça e perguntavam, em português arcaico: “Quanto me ganhas para me levar ao quartel?”. Com o tempo, aos charreteiros, os maliciosos como os taxistas de hoje, bastavam ver um militar fardado, para comentar com sarcasmo: “Lá vem um meganha!”. A expressão ganhou as ruas, disseminou-se.

Encantado com as imensas palmeiras do início da Avenida Amazonas, segui com a família rumo à moradia alugada no Bairro São Paulo, então, longínqua periferia. Magérrimo, nascido do seio da mata atlântica, tímido e arredio, eu chegara a outra selva, a de concreto. Sentia-me como um animal fora do hábitat. Mas qual bicho seria? Não demorei a descobrir. Saí à rua para me enturmar, como qualquer menino. Levado pelo primo Cowboy, conheci Goiaba, Pistoco, Carijó, Maurício, Drogaria. E foi esse último quem identificou o animal. “Com esse corpo e esse olhar, só pode ser o Coiote!”

Primeira regra: a turma não se dava com a molecada da rua de baixo nem com a da rua de cima. “Mas você fica. É primo do Cowboy.” E fiquei. A dificuldade era fazer-me entender. Falava um dialeto do Vale do Jequitinhonha. Era ponga (carona), china (gude), nica (moeda) e tantos outros verbetes estranhos aos meninos da capital, então com cerca de 700 mil moradores. Às vésperas de completar 13 anos, a turma me intimou: “É a idade do batismo”. “Eu já sou batizado”, reagi. A apelação não valeu.

Sábado seguinte, banho tomado, roupas limpas e cada um com 5 cruzeiros nos bolsos, caminhamos até a então Vila Ipiranga para viajar de bonde. “Vamos ao porto seco”, disse Cowboy. “O bonde anda devagar e não pagamos passagem. A gente salta de um lado e sobe do outro, driblando o cobrador. Porto seco era a Rua Guaycurus e adjacências. Lá estavam os grandes atacadistas e seus armazéns abarrotados de gêneros ensacados. Quando chovia forte, o Arrudas levava tudo.

A Guaycurus e arredores não eram fartos apenas em arroz, feijão e açúcar. As casas de saliência, para vergonha da tradicional família mineira, abundavam. “Coiote, fique velhaco com os PMs. Menor de idade não pode vir aqui. Eles dão tapas e chutes na bunda.” Era o alerta da turma. “E como vou entrar nos, nos, nos...?” “Estufe o peito e engrosse a voz. E se vir um sujeito de fala mansa, roupas diferente, saia fora. É o Cintura Fina. Malandro, briga bem e tem uma navalha afiada.”

Saí do porto seco diferente. Sentia-me homem, já cidadão de BH. Apaixonado por cinema, passei a listá-los. Todos chamados cinemas de rua. Primeiro, os do Centro. Brasil, Acaiaca, Tupi. Quase uma dezena. Depois os dos bairros, mais de 20. Do Azteca (Prado) ao Independência (Horto). Do Rosário (Bairro da Graça) ao Pathé (Savassi). A maioria, professora, de Antônio Luciano, dono também de hotel e de grandes áreas na cidade, cobertas de eucaliptos, para reduzir os impostos, depois transformadas em bairros.

Não fique rubra, professora, mas sabe que aquele aparelhinho de furar papel para encadernação tinha o apelido de Luciano? Isso porque ele era tipo conquistador. Tanto que deixou um cacho de herdeiros e uma longa batalha jurídica pelo legado. Falando em cinema, soube que o cineasta Orson Welles, em visita a BH nos anos 1940, estivera no Montanhês, um dancing que havia na Guaycurus. Na saída, teria urinado ao pé de uma árvore, no primeiro quarteirão da Rua Rio Janeiro. Fui lá. Não sei se era a mesma, mas reverenciei a primeira que vi, como se ali estivesse o diretor de Cidadão Kane. A senhora não dizia que foi o melhor filme que viu?

Com os anfitriões Drogaria e Cowboy, continuei conhecendo a cidade naqueles primeiros anos. Em um domingo fomos ao Parque Municipal. Acredite, professora, ele não era cercado. Faltava violência para justificar. Lembrei-me das matas de minha infância. Remei como um louco. À noite, o parque virava refúgio de homossexuais. Repudiados nas ruas, procuravam emoções em torno da lagoa grande. Os mais corajosos preferiam os fundos da galeria inferior do Cine Brasil.

Sabe, professora, o que chamam hoje de metrô em BH só é um pouco mais espichado que o “subúrbio”, trem também elétrico dos anos 1950 e 1960, que corria no mesmo leito entre o Matadouro (Bairro São Paulo) e Barreiro? Matadouro, minha mestra, era onde abatiam as reses para nos abastecer de carne. Sabia que o leite vinha à nossa porta? Era a vaquinha da Itambé, uma carrocinha com um recipiente. Uma torneira enchia os pequenos baldes dos clientes.

Um dos programas da turma à noite era a paquera na Afonso Pena. Parecia dia. As vitrines dos magazines, das camisarias, joalherias e sapatarias iluminavam as calçadas. Nem sabíamos que as lojas tinham portas de aço. Hoje, elas deixam os passeios sombrios. Bons tempos de Belô, professora. Festa a gente fez mesmo foi na inauguração do Mineirão, em 1965. Cruzeirenses e atleticanos caminhavam lado a lado para ver a Seleção Mineira vencer o argentino River Plate.

Os quintais ofereciam outra diversão. Fartos em goiabeiras, mangueiras, jabuticabeiras, amoreiras, jambeiros e até laranjeiras mereciam nossas visitas furtivas. Drogaria advertia: “Cuidado com tiros de sal”. Donos de quintais e chácaras trocavam o chumbo das espingardas por sal grosso. A intenção era espantar, não matar. Alvejado, restava ao moleque curtir a dor sentado numa bacia com água até dissolver todo o cloreto. Um dos meninos tomou tanto tiro de sal que ganhou o apelido de “bumbum temperado”.

Um dia começaram a “modernizar” a cidade. Os carros importados começaram a dar lugar aos nacionais. Primeiro, cortaram os imensos fícus da Afonso Pena. Depois, derrubaram a linda Feira de Amostras, no início da avenida. Trocaram o bonde pelo trólebus (ônibus a cabo elétrico), que não durou muito. A política do transporte era abrir espaço para os automotores. Passaram tratores sobre a Lagoinha, destruíram a Praça Vaz de Melo e sua poesia. Ergueram viadutos, abriram um túnel e trincheiras e novas avenidas.

Essa transformação começou na minha adolescência. E a boemia, professora, não foi expulsa apenas da Vaz de Melo. Era o Mocó da Iaiá, na Rua Carijós, o ponto preferido dos intelectuais da cidade. Lá, conheci Pedro Nava, Roberto Drummond, Celius Aulicus, Schubert Magalhães, Geraldo Magalhães, Wander Piroli, João Etienne e outros caras da literatura, teatro, cinema e jornalismo. O bar foi obrigado a fechar as portas e essa turma, a contragosto, migrou para o Malleta.

Paralelamente ao que chamavam de modernização, BH entrou no processo da urbanização desordenada, como todas as grandes e médias cidades do país. Hoje não é mais a Cidade Jardim dos tempos de Noel Rosa, quando o sambista aqui esteve à cata de cura para tuberculose; de Carlos Drummond de Andrade, que por aqui passou antes de se tornar “gauche” na vida; de Fernando Sabino, que imortalizou o Viaduto de Santa Tereza. Tornou-se uma fera indomável, violenta, travada pelo tráfego de 2,2 milhões de veículos e 2,5 milhões de moradores.

Por enquanto é só. A bênção, professora. Perdoe-me por esse longo atraso. Agora, vou ligar para farmácia e pedir para entregar em casa meu remédio de pressão. A propósito, doce senhora, uma das redes de farmácias daqui é pioneira em delivery. Já nos 1960 tinha o serviço, feito por Fusquinhas amarelos. Até mais. Do seu relaxado, mas dedicado aluno.


*Sem pretensão, esse texto é baseado em obra-prima do genial Celius Aulicus, publicada neste jornal em 1972, por ocasião dos 75 anos de BH

Arnaldo Viana é jornalista. Trabalhou no Estado de Minas durante 37 anos


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