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Do jiló ao escargô: a aposta na inovação na gastronomia de Minas

Nomes consagrados apostaram na inovação para incrementar as receitas. Entra em cena a valorização do chef e a chegada de ingredientes exóticos


postado em 07/08/2018 07:06 / atualizado em 07/08/2018 14:39

(foto: Beto Novaes/E.M/D.A Press)
(foto: Beto Novaes/E.M/D.A Press)
 Um bate-papo com Ivo Faria a respeito do desenvolvimento da gastronomia mineira pode render horas e horas de conversa, gerar um livro até. Isso porque o profissional que comanda o Vecchio Sogno e, mais recentemente, o restaurante de mesmo nome no Mercado da Boca, viveu na cozinha e na pele o que podemos chamar de transição entre a gastronomia do século 20 para a do 21. De família simples, ele buscou o Senac a fim de se tornar garçom, ainda aos 14 anos, “numa época em que negros não podiam circular no salão de restaurante”, lembra, o que o fez integrar a turma de formação em cozinha, “o que pra mim foi maravilhoso”, comemora.


Até então, recorda, a sociedade de BH fazia grandes festas em casas do bairro Cidade Jardim, frequentava os restaurantes dos hotéis Del Rei e Normandy, o Automóvel Clube. “Os melhores tinham chefs de fora, da França. Minas só ganhou uma escola de formação em cozinha, não sei se devido a Juscelino ou não, por volta dos anos 1960, na unidade Senac da Rua Tupinambás.” Sim, já formado, Ivo estudou e lecionou lá, inclusive com o chef Lucien Iltis, francês radicado no Brasil e um dos responsáveis por trazer fundamentos da alta gastronomia para Minas. “Ele comandou por anos a cozinha do então governador, mas não quis se transferir para Brasília quando Kubitschek foi eleito presidente. Com ele, a gastronomia profissional teve início em Minas e em BH, tornando-se referência para todas as escolas que surgiram depois.” No entanto, revela, poucos se interessavam pela profissão. “Ser um profissional de cozinha era considerado subemprego, apenas pessoas muito humildes buscavam formação na área.”


Faria trabalhou por anos no Senac, período em que esteve próximo ao chef francês, com quem aprendeu muito. Acompanhou o funcionamento de casas como Alpino, Cantina D’ ngelo, Monjolo, Camponesa, Hungaria, Pata de Ouro, Dona Derna, Chez Bastião, Tip Top, Cantina do Lucas, até ser convidado para trabalhar no francês Bar e Café São Jorge, “de 14 mesas, alto luxo”. A carreira ainda inclui atuação na cozinha industrial e temporada de bolsa de estudos na Suíça, curso técnico de nutrição, outra temporada como contratado no Senac, anos no Grupo Alpino, até 1995, quando saiu para abrir o Vecchio, em sociedade com Memo Biadi. “Nos restaurantes da cidade não existia o hábito de a figura do chef circular pelo salão, e eu fui um dos que puseram a cara para fora. Trouxe esse conceito da Europa e me orgulho de ter ajudado a quebrar essa barreira. Pensei: não vou permitir mais isso, se faço a comida, tenho que mostrar quem sou.”

Mistura acertada

Faria lançou ainda a aposta na cozinha de autor, com destaque para produtos inteiros, mistura de ingredientes – inclusive os de raiz mineira, como jiló, umbigo de banana, pitomba, uvaia, cambuci, e, desde então, viaja o país e o mundo levando os ingredientes que encontra aqui na bagagem. “O público também mudou. Antes, servir receitas com jiló ou abóbora causava estranhamento, mas, hoje, os ingredientes de terroir são muito valorizados em países cuja gastronomia é desenvolvida, como a França. O produto é simples, mas a forma de preparar é diferente”, aponta, na missão de valorizar a nossa cultura, nossa gastronomia, aquilo que tem o nosso terroir.
Entre os desafios para o futuro, o chef registra a necessidade de o brasileiro olhar para o próprio umbigo, criticando os problemas de logística, o custo elevado dos fretes. “Nosso transporte é caro, perdemos produtos, desconhecemos nossos ingredientes. O desafio está aqui mesmo.”

Porções individuais

Inovação nos anos 1970: no Café Ideal, Fernando Areco, conhecido como Motta, e o sócio e amigo de infância Jorge Rattner, já falecido(foto: Edésio ferreira/EM/D.A.Press/reprodução)
Inovação nos anos 1970: no Café Ideal, Fernando Areco, conhecido como Motta, e o sócio e amigo de infância Jorge Rattner, já falecido (foto: Edésio ferreira/EM/D.A.Press/reprodução)
Também assina um legado e tanto no desenvolvimento da gastronomia mineira o uruguaio Fernando Areco Motta, nome à frente do A Favorita, referência em culinária sofisticada na capital. Hoje, o restaurante é cartão de visitas de uma trajetória que começou lá na década de 1980, quando fundou o Café Ideal ao lado do uruguaio e sócio Jorge Rattner (já falecido), um marco tanto na introdução da nouvelle cousine em BH quanto no revolucionário serviço à mesa, que trocou as travessas por porções individuais, o chamado empratado. “Cheguei em 1973, com o coreógrafo Oscar Arrais, e logo conheci a família Pederneiras – leia-se Grupo Corpo, a Freuza Zechmeister. Trabalhava como produtor cultural e me convidaram para ajudar em Maria, Maria. Assim, vim morar de vez na capital mineira. A gastronomia entrou na história num primeiro negócio, pequeno e anexo ao balé, o Bar e Café Estufa, em que fui sócio do também produtor Paulo Rogério. Depois me associei ao Rattner, recém-chegado de uma temporada de estudo em gastronomia em Londres, e fundamos o Café Ideal.”


Motta lembra que o período foi marcado por transformações na gastronomia de todo o mundo, principalmente a partir do surgimento da nouvelle cousine, na França. Aqui, no entanto, a cena era estática. “BH ainda era um pouco atrasada, não só na forma de servir e preparar as refeições como também na decoração dos estabelecimentos. Por isso nossa proposta foi considerada revolucionária. Éramos jovens, havia desejo de renovação e fomos os primeiros em muita coisa: a servir a comida no prato e não em travessas, a oferecer ingredientes como kiwi, ostras, patos (magret), escargô, sorvete entre dois pratos, a convidar chefs para fazer festivais: Alex Atala, Emmanuel Bassoleil, Erick Jacquin.”

À frente do A Favorita, o uruguaio Fernando Motta trouxe a nouvelle cousine para BH e investe no clássico que permanece novo(foto: Leandro Couri/EM/D.A. Press)
À frente do A Favorita, o uruguaio Fernando Motta trouxe a nouvelle cousine para BH e investe no clássico que permanece novo (foto: Leandro Couri/EM/D.A. Press)

O empreendedor fundou ainda o Cafezinho, A Favorita, o Splêndido e o La Vitória (os dois últimos com atividades encerradas após o falecimento do sócio). No restaurante da Rua Santa Catarina, que completa 19 anos, ele aposta na tríade boa cozinha, bom serviço e ambiente agradável.. “Não sou chef, mas dirijo a cozinha, que considero clássica atualizada, a partir de uma linha que seguimos há muitos anos, procurando os melhores ingredientes, a leveza. O clássico que permanece novo.” Sobre a atual cena mineira, Motta observa mais profissionalização, valorização da figura do chef, da cozinha de autor, “o que melhorou muito a oferta, internacionalizou. A própria comida mineira evoluiu e também o público, cada vez mais entendido e ávido por novidades”.


Experiente, Motta considera como meta seguir em frente sem se acomodar ou se acovardar com a crise econômica, “a pior que já vivi aqui”, registra. E amplia o olhar para o futuro. “Considero interessante a cozinha mineira sair da fronteira de Minas e do Brasil, se fazer conhecer, e para isso os produtores mineiros têm que tentar melhorar os produtos e não dormir no ponto da tradição.”

 

Receita: Saladinha de jiló com sorvete de cambuci

(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Restaurante Vecchio Sogno (rendimento 6 pessoas)

Ingredientes: 10 unidades de jiló verde, 10g de salsa fresca picada,50g de cebola picada, 80ml de vinagre branco, 80ml de azeite, pimenta-do-reino a gosto,6 bolas de sorbet de cambuci, 30 lâminas de palmito pupunha (ou abóbora menina), 200g de creme de leite, 6 unidades de truta defumada, ½ limão. Para o molho:30g de manteiga, 40g de cebola picadinha, 1 unidade de manga, coentro a gosto, 40ml de vinho branco, 80ml de caldo de peixe, 1 unidade de limão,sal, açúcar, wasabi e tabasco (a gosto).

 

Modo de fazer: Descascar o jiló, cortar em cubinhos (brunoise) e colocar em uma vasilha com água e vinagre. Espremer e escorrer a água, repetir este processo por 3 vezes para tirar o amargo do jiló. Em uma vasilha, colocar o jiló espremido, juntar azeite, salsa, cebola e pimenta-do-reino. Corrigir o tempero, levar ao refrigerador e deixar gelar. Cortar a pupunha em lâminas. Fazer uma torre intercalando a salada de jiló e as lâminas de pupunha. Colocar no prato a torre e uma quenelle (porção trabalhada) de sorvete de cambuci por cima. Decorar com flores e brotos de agrião. Colocar ao lado um filet de truta defumada. Bater o creme de leite, temperar com wasabi, limão, sal e pimenta- do-reino. Refogar na manteiga a cebola, juntar 50ml de vinho branco, os cubos de manga, ocoentro a gosto. Molhar com o caldo e deixar cozer. Processar e corrigir tempero, sal, limão, açúcar e tabasco. Servir a truta ao lado da torre de jiló com o creme e o molho de manga.

 

 


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