Laura Brito

Advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de pós-graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área

No mês passado, o IBGE divulgou as estatísticas do Registro Civil de 2022, trazendo informações valiosas sobre a família no Brasil. Os dados são abertos e podem ser analisados por região, por estado e em relação a crescimento ou dissolução familiar. Não bastasse, há a possibilidade de comparar os números desde 2018. Trata-se de divulgação pelo sistema Sidra do IBGE.


É importante saber que esses dados são coletados por recuperação automática dos cartórios de registro civil de pessoas naturais, que são os responsáveis, no Brasil, pelos registros de nascimento, casamento, divórcio e óbito. A cada registro desse tipo, há uma comunicação ao IBGE, que forma uma base de dados bastante fidedigna sobre a constituição de famílias formais no nosso país.


Chamo a atenção, contudo, de que, apesar de fiéis, esses dados retratam apenas as famílias formalizadas no Brasil. Ou seja, só estamos considerando as “relações com papel e tudo”. Logo, esses números falam muito mais sobre a procura e acesso ao cartório do que sobre as composições familiares de fato.


Isso porque as estatísticas do registro civil de pessoas naturais não consideram as uniões estáveis, as separações de fato, nem as parentalidades socioafetivas e não nos permitem concluir, de pronto, a quantas anda a (nem tão) tradicional família brasileira. Por isso, é preciso cuidado em todas as conclusões tiradas nesses números.


Por exemplo, foi noticiado um recorde nos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Dessa informação não se pode concluir que há mais pessoas homossexuais ou que elas estejam vivendo mais juntas. O que se pode imaginar é um espaço social maior para a formalização dessas uniões que, até 2011, sequer eram consideradas famílias no sentido jurídico.


Ainda, os dados dos cartórios de registro nada falam sobre o drama brasileiro do casamento infantil. Como as pessoas com menos de 18 precisam de autorização e as com menos de 16 não podem se casar, a triste realidade do casamento infantil, na verdade, é o horror das uniões estáveis infantis. As meninas do nosso país que são conduzidas a uniões que colocam seus futuros em risco não são formalmente casadas.


No mesmo sentido, a flutuação no número de casamentos e divórcios não pode ser entendida, por si só, como aumento ou não da formação e da dissolução de famílias. Isso porque as composições familiares informais e as separações de fato não fazem parte dessa estatística e não é possível saber a proporção delas na nossa sociedade. Aliás, basta que um divórcio não seja levado a registro – o que é bastante comum – para macular essa informação.


Por outro lado, os dados sobre nascimento e óbito, esses, sim, são uma captura da realidade. É praticamente impossível, hoje, ter um filho e mantê-lo sem registro – tudo no Brasil depende desse documento. Por isso, as notícias de queda da natalidade são conclusões que podem efetivamente ser tiradas dos dados do registro civil de pessoas naturais.


As estatísticas do Registro Civil divulgadas pelo IBGE são importantíssimas e servem como guia para políticas públicas. Mas elas não podem ser tidas como um retrato real da família brasileira. A tradição (nisso, sim, somos tradicionais) de constituição de famílias informais e de separações de fato formam uma espécie de filtro nesse retrato, de maneira que o que a gente vê nos dados não é exatamente o que enxergamos ao vivo.