Expressão 'Fake News' redigida em máquina de escrever; imagem meramente ilustrativa -  (crédito: Markus Winkler/Pexels)

Expressão 'Fake News' redigida em máquina de escrever; imagem meramente ilustrativa

crédito: Markus Winkler/Pexels

Há quase um ano escrevi nesta coluna sobre um médico que tirou a própria vida, após ter o nome dele injustamente ultrajado pela imprensa. O caso gerou grande comoção na classe médica, pouco interesse na população geral, e nenhuma reflexão por parte dos jornalistas tóxicos, que seguem praticando as mesmas ilegalidades.

 

A vítima da vez é um cirurgião plástico de MG, injustamente exposto na mídia desde a semana passada, pelo caso de uma paciente.

 

Segundo o cirurgião, a paciente em questão passou por 4 cirurgias plásticas em 05/02 com duração total de 6 horas, sem qualquer intercorrência, tendo alta no dia seguinte. O pós operatório transcorreu normalmente até a segunda semana, quando a paciente e os familiares dela tiveram problemas intestinais, ocasionando a contaminação da ferida cirúrgica.

 

Mesmo sem sinal de infecção (fato comprovado pelos exames hospitalares) o cirurgião a internou para tratamento preventivo com antibiótico venoso. Ao longo da estadia hospitalar, 1 mês após as cirurgias plásticas, a paciente contraiu infecção por diferentes bactérias resistentes, evoluindo a óbito com quadro de sepse (infecção generalizada).

 

 

A paciente contou com a assistência do cirurgião desde a cirurgia até depois da internação, visto que, em determinado momento, os familiares da paciente o impediram de seguir com a assistência, que ficou a cargo de outros médicos. O cirurgião plástico só teve ciência do óbito através dos familiares da paciente, e pouco depois passou a sofrer o assédio da imprensa.

 

O primeiro assédio foi na semana passada, quando os repórteres o abordaram com uma versão totalmente distorcida dos fatos. Após a exposição da verdade, a matéria foi retirada de pauta pela redação. No dia 25/04, outra equipe de repórteres assediou o médico, com uma postura reprovável e maliciosa. Solicitaram a confirmação de uma entrevista televisiva com menos de 4 horas úteis de prazo, negando-se a informar previamente detalhes da reportagem, afirmando que só o fariam durante a entrevista. A intenção era clara: constranger o cirurgião diante das câmeras, garantindo contornos ainda mais dramáticos à reportagem.

 

Nunca é demais lembrar que as normas éticas do CFM impedem a concessão de entrevistas como a pretendida pelos repórteres. O cirurgião emitiu uma nota de esclarecimento, desconstruindo a absurda narrativa acusatória e informando a verdade, baseada nos documentos e registros do prontuário da paciente. Além disso, solicitou que os dados pessoais dele não fossem divulgados na reportagem, pois ser exposto e condenado prematuramente pela imprensa, antes da conclusão das investigações e de eventual sentença condenatória, seria totalmente ilícito e sem compromisso com a verdade.

 

 

Mas a verdade não garante uma boa audiência, e as fake news são sucesso garantido. O circo estava armado, e ao médico não restava opção: apenas ser exposto e ultrajado, de forma injusta e ilícita.

 

A reportagem foi construída com base na narrativa informada aos repórteres. Acusaram o médico de ter abandonado a paciente após a cirurgia, quando na verdade não lhe faltou assistência. Informaram a realização de cinco cirurgias, quando na verdade foram quatro. Sustentaram a duração total de sete horas, quando na verdade foram seis. Citaram complicações durante as cirurgias, que na verdade nunca ocorreram. Criticaram o planejamento cirúrgico, sendo que o planejado transcorreu com sucesso. As acusações foram tão mal elaboradas que, mesmo se fossem verdade, não guardariam nexo de causalidade com o óbito da paciente!

 

Para reforçar o sensacionalismo, a reportagem deu voz a outra paciente, que relatou insatisfação com as cicatrizes decorrentes da cirurgia, e com sua vida financeira e amorosa. Informaram que o nome do profissional aparece em 3 processos de “erro médico” (omitindo, contudo, que nunca houve condenação por erro profissional). Ora, ainda que 3 processos representassem erros profissionais, isso significaria uma média de 0,0006% em relação às mais de 4.600 cirurgias realizadas pelo médico em seus quase 20 anos de carreira. O cirurgião possui (ou possuía) reputação ilibada, com RQE em Cirurgia Geral e Cirurgia Plástica, é devidamente registrado no CRM-MG e na SBCP-MG, e tem todas as credenciais técnicas necessárias para realização das cirurgias em questão.

 

Após a publicação da reportagem na última sexta-feira, a vida do cirurgião virou um pesadelo. Devido à boa audiência alcançada pelas fake news, diversos veículos de imprensa repercutiram a matéria, reproduzindo seu conteúdo inverídico. O efeito imediato da campanha difamatória foi inúmeros cancelamentos de cirurgias e consultas, impactando não só na vida do cirurgião em referência, mas de todos os demais profissionais da clínica.

 

Mas as consequências mais graves ainda estavam por vir: o médico e seus familiares passaram a ser covardemente massacrados nas redes sociais, por conhecidos da paciente e uma legião de anônimos. Uma infeliz campanha de cancelamento social passou a ser administrada por certos agentes (já monitorados pelas autoridades) buscando inúmeras formas de vingança contra o cirurgião e sua família, inclusive se passando por pacientes e publicando avaliações negativas no Google.


A absurda busca por vingança não parou por aí: mensagens absurdamente hostis, cruéis e ameaçadoras passaram a ser enviadas ao cirurgião e sua família, causando terror na vida de todos. Esta é a situação em que jornalismo tóxico coloca pessoas inocentes envolvidas em casos com potencial de audiência: jogam toda a sociedade contra elas causando um linchamento social, sem possibilidade de defesa. São atos de terrorismo praticados por pessoas inescrupulosas, em busca de vingança ou de meros 15 minutos de fama.

 

Casos sensíveis como este deveriam ser abordados pela imprensa de forma isenta, responsável e profissional. O assassinato de reputações que ocorre sempre que há uma fatalidade na medicina, independentemente da comprovação de culpa do médico, é criminoso. A medicina não é uma ciência exata, e como qualquer outra pessoa o médico goza da presunção de inocência. O erro precisa ser provado, nunca deve ser presumido! A imprensa submeteu o médico e seus familiares a um julgamento sumário nas redes sociais (a praça pública da era moderna) eliminando seus direitos à presunção de inocência, contraditório e ampla defesa. A condenação foi sumária, e o linchamento social ocorre com extrema crueldade.


Os repórteres e veículos de imprensa serão responsabilizados pelo mal causado ao cirurgião e seus familiares? Certamente, sobretudo mediante a recente confirmação, pelo STF, da responsabilização da imprensa pelos efeitos de seus atos. Os autores (e os articuladores) dos atos de terrorismo contra o cirurgião e seus familiares responderão civil e criminalmente pelos ataques covardes? Claro, mais cedo do que imaginam! Mas a maior certeza de todas é que nada disso irá reparar os danos causados pela jornada ao inferno vivida pelas vítimas dos crimes do jornalismo tóxico, em casos como este.


Mesmo com todas as evidências no presente caso, ninguém é obrigado a considerar o cirurgião inocente. Contudo, ninguém pode afirmar sua culpa antes do fim das investigações e após o devido processo legal, garantido o contraditório e a ampla defesa. Condená-lo sumariamente é um erro. Se você é adepto  desta cultura, não se esqueça que o mundo dá voltas, e amanhã, você pode estar do outro lado.

 

“Direito e Saúde”

Renato Assis é advogado e professor, especialista em Direito Médico há 17 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.

renato@renatoassis.com.br