Num país democrático e multiétnico como o nosso, coexistem diferentes formas de pensar e de viver, nem sempre em harmonia. Uma delas merece cada vez mais atenção, pela contribuição que pode dar ao planeta, sobretudo à ciência, nesse momento de emergência climática: a cosmologia indígena. Diante da destruição das florestas e consequente aquecimento global, da frequência e escala crescentes dos desastres naturais, os saberes indígenas ancestrais começam a ganhar corações e mentes na sociedade.
Não se trata mais de um debate sobre modelos de desenvolvimento, pura e simplesmente. Trata-se da dramática condição humana que emerge nos “desastres naturais”, como a que estamos vivendo no Rio Grande do Sul. A capacidade de adaptação às mudanças, hoje focada nas relações econômicas e na inovação tecnológica, precisa voltar ao leito da relação evolutiva dos seres humanos com a natureza, porque põe em xeque a nossa capacidade de adaptação às mudanças ambientais, sobretudo climáticas.
A vida e os saberes indígenas consideram o universo em sua totalidade e inserem o ser humano em uma complexa rede de relações, que envolve o natural e sobrenatural. Embora violentamente agredidos pelos interesses de mercado e a modernização permanente das atividades econômicas, esse conhecimento não está subordinados à lógica dos interesses de mercado. Historicamente, cederam lugar à razão e à ciência, mas os fatos mostram que ainda temos muito a aprender com nossos 350 povos indígenas.
Assim como estamos aprendendo e ensinando, simultaneamente, o manejo e aproveitamento dos recursos naturais de maneira a não esgotar suas possibilidades às comunidades tradicionais. Quilombolas, pescadores artesanais, as quebradeiras de babaçu, seringueiros, castanheiros, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, sertanejos, pantaneiros, geraizeiros e caatingueiros, entre outros, ficaram à margem da modernização, porém, herdaram e/ou desenvolveram saberes que garantem sua sobrevivência em condições muito desfavoráveis.
Precisamos dar mais atenção às vozes dissonantes desses setores, como a de Ailton Krenak, o filósofo indígena, recém-empossado na Academia Brasileira de Letras (ABL). Ativista do movimento socioambiental, doutor honoris causa pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Krenak nasceu na região do Vale do Rio Doce, Minas Gerais. Exerceu um papel crucial na organização e conquista dos direitos indígenas na Constituinte de 1988.
O nome Krenak significa cabeça (kre) da terra (nak). Os krenak ou borun são os últimos “Botocudos do Leste”, nome atribuído pelos portugueses no fim do século 18 aos grupos que usavam botoques auriculares ou labiais. São conhecidos também por aimorés e se autodenominam grén ou krén. Em 2015, a catástrofe de Mariana devastou toda a fauna e vegetação do Rio Doce, atingindo a principal fonte de subsistência dos Krenak, representados por pouco mais de 600 sobreviventes que ainda ocupam a região.
Desastres naturais
Lançado em 2019 pela Companhia das Letras, “Ideias para adiar o fim do mundo” é o livro mais famoso de Krenak. A obra critica a ideia de humanidade como um conceito separado da natureza. Essa premissa seria baseada no desastre socioambiental da nossa era, o antropoceno. Somente através do reconhecimento da diversidade e da recusa da ideia do humano como superior aos outros seres, é possível dar outro significado às nossas existências e frear a caminhada para o colapso ambiental.
Sua obra filosófica sustenta-se na cosmologia indígena. “O amanhã não está à venda”, de abril de 2020, sobre como a pandemia de COVID-19, nos fez refletir sobre o que é a ‘normalidade’ e o que significaria voltar para esse status após a crise social, econômica e sanitária. Publicado no fim de 2020, A vida não é útil é um diálogo sobre o cenário pandêmico, no qual aponta as tendências destrutivas da civilização, durante um governo negacionista de extrema-direita.
Mais recente, seu livro “Futuro ancestral” confronta o senso comum ao explorar a ideia de futuro: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.” Esse raciocínio nos remete à tragédia do Rio Rio Grande do Sul. Uma árvore derrubada na Amazônia, como num efeito borboleta, impacta o clima dos pampas. Esse entendimento já tem um consenso, mas não tem a devida tradução nas políticas públicas, que vão na contramão.
O Congresso derrubou o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a itens da Lei dos Agrotóxicos que deram ao Ministério da Agricultura competência exclusiva para registrar agrotóxicos, esvaziando Ibama e Anvisa. Outros 25 projetos estão prontos para votação com objetivo de enfraquecer a legislação ambiental e “passar a boiada”. Os deputados Lucas Redecker (PSDB-RS) e Jerônimo Goergen (PP-RS), além do senador licenciado Luis Carlos Heinze (PP-RS), gaúchos, estão entre os autores de leis favoráveis a flexibilizar áreas de preservação ambiental.
O próprio governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), promoveu cortes no orçamento da Defesa Civil e nos projetos de resposta a desastres ambientais. Em 2019, propôs um projeto que alterou 480 pontos do Código Florestal estadual. A prefeitura de Porto Alegre nada investiu na prevenção contra enchentes em 2023. Em março, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, com 38 votos a favor e 18 contra, um projeto que permite devastar campos nativos do tamanho do Rio Grande do Sul e do Paraná juntos.