A divisão sexual do trabalho é produto de uma construção social que traduz a relação de poder dos homens sobre as mulheres -  (crédito: Drazen Zigic)

A divisão sexual do trabalho é produto de uma construção social que traduz a relação de poder dos homens sobre as mulheres

crédito: Drazen Zigic

“A divisão sexual do trabalho é produto de uma construção social que traduz a relação de poder dos homens sobre as mulheres”

O trabalho de cuidado deve ser o centro da discussão quando falamos sobre equidade entre homens e mulheres. A economia do cuidado diz respeito a serviços prestados por cuidadores de idosos, pessoas com deficiência, crianças e bebês, e ao trabalho doméstico, sendo ele remunerado ou não. Tudo isso é tão óbvio, e, ao mesmo tempo, tão invisibilizado que muitas pessoas não entenderam o tema da redação do Enem 2023: 'Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil'. O trabalho de cuidado não é visto porque, culturalmente, ele é chamado de amor.

Silvia Federici, uma das feministas mais importantes da atualidade, já defendia que as tarefas realizadas dentro de casa deveriam ser remuneradas desde a década de 1970. Segundo ela, o trabalho doméstico é o trabalho mais importante da sociedade capitalista, porque dá origem aos trabalhadores, e sem eles, não há trabalho. E é a desvalorização do trabalho de cuidado, do trabalho doméstico, que permite o controle das mulheres.

“O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago” - Silvia Federici

Não por acaso, outro dia foi notícia nos jornais a história do homem que pediu pagamento de verbas rescisórias, FGTS, horas extras e indenização por danos materiais por ter permanecido na casa da ex-companheira quando ela estava em viagem para o exterior, por cerca de um mês, assumindo tarefas domésticas e cuidados com o filho da mulher. Quando um homem executa esse trabalho, ele passa a enxergá-lo como trabalho! Imagine se as mulheres decidirem fazer o mesmo? Pobre homem oprimido pelo matriarcado, pelo femismo, pelo paternalismo que, mesmo sem o apoio de outros homens, teve a coragem de denunciar essa violência doméstica e de trabalho análogo à escravidão.

No livro “Manifesto Antimaternalista”, Vera Iaconelli conta que a ideia pseudoteoria do “instinto materno” foi criada para responder a uma necessidade política, econômica e social de um estado que percebeu que as crianças e jovens dependiam de cuidados constantes. Essa ideia desonerou os homens do trabalho de cuidado, e o deixou para as mulheres.

A divisão sexual do trabalho é produto de uma construção social que traduz a relação de poder dos homens sobre as mulheres, atribuindo-lhes responsabilidades diferentes pelo único motivo de seu sexo biológico, cabendo às mulheres o trabalho reprodutivo, e aos homens o trabalho produtivo, onde o trabalho produtivo “vale” mais que o trabalho reprodutivo.

Para Angela Davis, “assim como as obrigações maternas de uma mulher são aceitas como naturais, seu infinito esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior da família”. Para muitos homens, incapazes de enxergar esse trabalho invisível que é realizado dentro de suas próprias casas, por mulheres (mães, esposas, funcionárias), o tema da redação do Enem 2023 é militância de esquerda, pauta ideológica, narrativa que coloca a mulher como vítima etc. O velho clichê de quem não pretende assumir responsabilidades sobre tarefas essenciais uma vez que detém o poder econômico que lhes foi garantido pela divisão sexual do trabalho.

O tema da redação foi muito pertinente e relevante mostrando que essa estrutura social funciona como uma ferramenta de opressão pois, quem controla o dinheiro tem poder, tem liberdade, tem escolhas. Quem não tem acesso ao dinheiro, precisa se submeter. Trabalho de cuidado é chamado de amor, mas isso não é amor, é subserviência.