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Estado de Minas

Com "alma de menina", Rayline era querida por todos

Apegada à família, Rayline era brincalhona e carinhosa. Tinha sonhos de mudar de emprego


postado em 17/03/2015 06:00 / atualizado em 17/03/2015 08:19

 

A mãe de Rayline, Rosalina, se emociona ao lembrar de como a filha era querida pelos indígenas da aldeia Sai Cinza. No porta-retratos, ela está com o corpo pintado de acordo com as tradições dos mundurukus(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
A mãe de Rayline, Rosalina, se emociona ao lembrar de como a filha era querida pelos indígenas da aldeia Sai Cinza. No porta-retratos, ela está com o corpo pintado de acordo com as tradições dos mundurukus (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
 

Com todos que a reportagem do Estado de Minas conversou, seja em Santarém ou em Fordlândia, a lembrança imediata de Rayline era como a moça, que morreu aos 26 anos, era boa de bola. Eleonai, de 31 anos, vendedora de cosméticos que atua na lateral esquerda, recorda: “Foi a primeira vez que ela jogou com a gente. Ela estava passando uns dias aqui em Santarém, tentava tirar a carteira de motorista antes de ir para a aldeia trabalhar”.

A estreia com a camisa do Jardim Santarém não poderia ser melhor. Um dos gols foi bonito, como descreve Eleonai: “Ela pegou de primeira, de longe e acertou o ângulo”. Se o campo tivesse as linhas demarcadas com cal, provavelmente, seria de fora da área. Outro, entretanto, foi tão fácil, que Rayline ficou até sem graça de comemorar. "Ela só escorou um cruzamento com um toquinho", detalha a lateral-esquerda.

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Rayline tinha planos mais ambiciosos do que brilhar nas partidas dos campos de terra batida e areia do Oeste do Pará. Além de batalhar pelo documento que lhe permitiria dirigir carros e motos, ela pagava a ampliação e reforma da pequena casa da família em Fordlândia. O salário que recebia para trabalhar na aldeia munduruku era considerado muito bom pelos parentes. Ela ganhava R$ 2.006, mais uma ajuda de custo de R$ 20 por diária fora de casa, o que ampliava o rendimento em R$ 400. Fazia dois anos que estava no trabalho. Antes, foi técnica em enfermagem no posto de saúde de Fordlândia.

A vila natal de Rayline começou a surgir em 1927, quando o norte-americano Henry Ford - um dos pais do automóvel, idealizador de um dos pilares do capitalismo moderno: o fordismo - quis fugir dos altos preços da borracha no mercado mundial e decidiu produzir o látex no Sudoeste do Pará. Começou a derrubar a floresta em 1929, plantou seringueiras e construiu uma cidade com estilo arquitetônico semelhante às que existiam no gelado estado de Michigan, nos EUA.

Família unida, em Santarém, para o nascimento da pequena Rayline. Irmã da recém-nascida, Angelina, de seis anos, sonhou que a mãe estava grávida e diz ter sido avisada pela tia, a quem era muito ligada(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Família unida, em Santarém, para o nascimento da pequena Rayline. Irmã da recém-nascida, Angelina, de seis anos, sonhou que a mãe estava grávida e diz ter sido avisada pela tia, a quem era muito ligada (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Deu tudo errado. A plantação foi infestada por uma praga, os trabalhadores se revoltaram e queimaram as casas e, em 1936, os norte-americanos abandonaram a produção do látex e começam a operar em Belterra, ao norte do Rio Tapajós. Lá também o “fordismo tropical” fracassou. Em 1945, a gigante automobilística abandonou os dois locais definitivamente. O governo brasileiro indenizou a Ford e, até meados da década de 1980, Fordlândia serviu de pasto para diferentes raças de bois em experimentos do Ministério da Agricultura.

Rayline nasceu em 16 de junho de 1987, época em que a vila adquiria os ares de cidade-fantasma que ainda conserva nos dias hoje, com casas e galpões abandonados. Quando criança, uma das diversões da menina - além de jogar futebol, é claro - era ir pescar com o pai, Raimundo, no Rio Tapajós. Indiferente aos constantes e assustadores relatos de jacarés, jiboias e piranhas, a garota avançava nas águas e, segundo atestam os membros da família, tinha sucesso nas pescarias.

família

“Ela era apegada demais à família, uma criança dentro de casa: abraçava e beijava a gente o tempo todo. Uma alegria só”, lembra a mãe, com a voz embargada e os olhos cheios d'água. O nome da técnica de enfermagem nasceu de uma junção dos nomes da família. “Coloquei em um caderno, misturei, acrescentei um y e inventei: Rayline”, explica a mãe, Rosalina Duarte Brito. O pai, Raimundo de Brito, de 59 e a irmã, Rosaline Brito Campos, de 32, contribuíram para a combinação de sílabas.

O nome da bebê foi escolhido pelo pai e teve total aprovação da mãe(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
O nome da bebê foi escolhido pelo pai e teve total aprovação da mãe (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Muitos preferiam chamá-la apenas de Ray. A irmã, Rosaline, principal conselheira e melhor amiga de Rayline, prefere se referir a ela como “mana”. Formada em filosofia e professora, a irmã mais velha era uma espécie de segunda mãe para a caçula. “Poucos dias antes do acidente, ajudei ela a montar um currículo. Não chegamos a imprimir, mas o plano era que ela encontrasse outro emprego assim que voltasse da aldeia”, recorda Rosaline.

O chefe da Casa de Saúde Indígena (Casai) de Santarém, Joaquim Martins da Silva, lembra que na sexta-feira anterior à tragédia, Rayline o procurou para saber se havia alguma oportunidade de trabalho na Casai. O plano dela era morar em Santarém, sem ter de viajar todo mês para a aldeia. “Eu disse a ela que está prevista a ampliação da Casai, para atender também procedimentos de média e alta complexidade, e que a previsão é que comece a funcionar em julho. Falei que faria o que pudesse para ajudá-la”, lembra Joaquim. “Na terça-feira fui surpreendido pela notícia do acidente.”

Eleonai jogou com Rayline a última partida da técnica de enfermagem e viu a amiga marcar três gols(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Eleonai jogou com Rayline a última partida da técnica de enfermagem e viu a amiga marcar três gols (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Joaquim é biólogo e trabalhou por 30 anos em aldeias indígenas. Conhece bem as dificuldades enfrentadas por quem precisa viajar em aviões pequenos, canoas rústicas e se submeter aos riscos de transpor distâncias amazônicas para levar o mínimo de atendimento aos índios e populações ribeirinhas.

 

Rayline tinha planos mais ambiciosos do que brilhar nas partidas dos campos de terra batida e areia do Oeste do Pará.
Além de batalhar pelo documento que lhe permitiria dirigir carros e motos, ela pagava a ampliação e reforma da pequena casa da família em Fordlândia. O salário que recebia para trabalhar na aldeia munduruku era considerado muito bom pelos parentes. Ela ganhava R$ 2.006, mais uma ajuda de custo de R$ 20 por diária fora de casa, o que ampliava o rendimento em R$ 400. Fazia dois anos que estava no trabalho. Antes, foi técnica em enfermagem no posto de saúde de Fordlândia

 

 

 

 

 

Nos dois anos em que trabalhou na aldeia, Rayline teve malária uma vez e chegou a ser internada no hospital de Santarém. Mesmo com as dificuldades, ela adorava o emprego, segundo relato da mãe: "Os índios gostavam muito dela e ela era apaixonada com eles. Foi chamada até para ser madrinha"

 

 

Interior da lancha Ana Karolina IV, que levou a família de volta para casa após o nascimento do bebê(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Interior da lancha Ana Karolina IV, que levou a família de volta para casa após o nascimento do bebê (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Quando Joaquim informou o seu endereço de e-mail para o repórter, já esperava a reação de espanto. Antes da arroba, o nome: malariamartins. “É uma mulher que sempre volta. Já a tive 32 vezes”, brinca Joaquim sobre o número de ocasiões que foi infectado pela malária.

Nos dois anos em que trabalhou na aldeia, Rayline teve malária uma vez e chegou a ser internada no hospital de Santarém. Mesmo com as dificuldades, ela adorava o emprego, segundo relato da mãe: “Os índios gostavam muito dela e ela era apaixonada com eles. Foi chamada até para ser madrinha”.

Orgulhosa, Rosalina mostra porta-retratos com foto da filha durante festa realizada na aldeia Sai Cinza. O rosto de Raylne está pintado com motivos indígenas. “Aqueles indiozinhos eram tudo para ela”, reforça a mãe, destacando que eles só pintavam os corpos dos que eram queridos.

Os mundurukus estão no Pará, Amazonas e Mato Grosso. A região do Vale do Tapajós, onde está localizada a aldeia Sai Cinza, em que Rayline trabalhava, era conhecida no século 19 como Mundrukânia. Um aspecto cultural da etnia é uma brincadeira que antecede a pescaria, quando a raiz de timbó é triturada e jogada na água; segundo a tradição, facilita a captura dos peixes. Rayline gostava de escutar as músicas cantadas pelos índios munduruku. A principal marca das melodias é o som das flautas parasuy tocadas pelos indígenas mais velhos.

Na imagem do “santinho” dado de lembrança aos presentes na missa realizada para marcar o segundo mês de falecimento de Rayline, a jovem aparece usando um fone de ouvido tão grande quanto o seu sorriso. Eis as frases de abertura impressas na mensagem: “A morte não é o fim. Nós sentimos tua falta, mas sabemos que a morte não é o fim, é apenas o cumprimento de uma nova vida em Cristo”. A missa de dois meses foi a primeira realizada, pois o corpo foi encontrado somente 40 dias após o acidente.

Pouco mais de um mês depois da missa, Rosaline descobriu que estava grávida. Ela já tinha uma filha, Angelina Campos, de 6 anos,  o xodó de Rayline. “Ela saía com a Angelina na rua e falava para todo mundo que era filha dela. Tem gente em Santarém que até hoje acredita. Era o jeito dela”, recorda. “Ela era muito acriançada”, completa.

Rosaline não planejava engravidar. A tensão pela procura do avião, as viagens até Jacareacanga para acompanhar de perto os trabalhos de busca, o reconhecimento do corpo da irmã e o luto que envolveu a família formavam um conjunto de fatores que não combinava com a alegria da gravidez.

"A Angelina ficava passando a mão na minha barriga e dizendo que tinha sonhado que a tia Ray falou que ela ia ganhar uma irmãzinha", lembra Rosaline. "Eu disse: menina, deixe de bobagem! Não tem nada disso", recorda.

Os dias foram passando e a pequena Angelina insistia na história. Continuava sonhando com a mensagem da tia e acariciando a barriga da mãe. Rosaline sentiu alguns sintomas diferentes em seu corpo e decidiu fazer um teste de gravidez. O resultado foi positivo. Os sonhos de Angelina estavam corretos. Rosaline contou para o marido, que sugeriu: "Se for menina vai chamar Rayline". Claro que ela concordou.

Em Fordlândia, terra natal de Rayline, a tragédia mobilizou toda a vila, que lamentou a morte da jovem(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Em Fordlândia, terra natal de Rayline, a tragédia mobilizou toda a vila, que lamentou a morte da jovem (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Rayline Sabrine Campos Souza nasceu no dia 20 de fevereiro. Quando a reportagem do EM conversou com a família pela primeira vez, em Santarém, a nova Rayline tinha apenas 12 dias. Durante as entrevistas com a mãe e a avó ela não chorou. A família estava toda na cidade, pois o parto foi realizado em um hospital de Santarém.

Com treze dias de vida, Rayline, a bebê, foi de barco para casa, em Fordlândia. Menos de um ano antes, o corpo da tia que empresta o nome para a recém-nascida fez o mesmo trajeto, no caixão, para ser enterrada no cemitério da cidade. Amanhã, na igreja de Fordlândia, será realizada a missa de um ano de morte.

O acidente impactou as famílias da pequena vila. Andando pelas ruas de terra batida a reportagem encontrou algumas pessoas vestindo camisas com a foto de Rayline. No trapiche - o pequeno porto de madeira que facilita o deslocamento dos passageiros - uma criança corre de um lado para o outro com Rayline no peito. Embaixo da foto, a frase: "A família Barreto lamenta sua perda".

São 17h de quinta-feira e o sol segue abrasador em Fordlândia. Alguns pescam no rio Tapajós usando somente linha e anzol. Um barco pequeno toca em volume altíssimo Time after time, antigo sucesso de Cyndi Lauper: If you´re lost you can look and you will find me time after time. A embarcação chega ao trapiche e os passageiros desembarcam. No dia anterior, na quinta-feira, foi a vez da família das Raylines chegar à vila. O embarque em Santarém foi às 13h na lancha Ana Karolina IV, uma embarcação que comporta quase 300 passageiros sentados. A passagem até Fordlândia custa R$ 55.

A chuva forte, que assusta os forasteiros, não altera o semblante daqueles que conhecem o comportamento do rio. A viagem segue tranquila. O ambiente no interior da lancha é dominado pelo cheiro forte da pipoca de microondas, o item mais vendido pela lanchonete da embarcação. Nas dez televisões uma versão pirateada do filme Sniper Americano é exibida com as legendas fora de sincronia. Alguém reclama e antes da metade o DVD é trocado por Thor, adaptação de 2011 da história do super-herói da Marvel. Impossível escutar qualquer diálogo com o barulho alto do motor da lancha. 

A chuva para antes de o barco chegar em Aveiros, município a que pertence a vila de Fordlândia. A luz bonita após o temporal trespassa pela janela e ilumina o rosto da pequena Rayline, que segue calma no colo da avó, Rosalina nos minutos finais da viagem. No momento de descer da lancha em Fordlândia é a mãe, Rosaline, que segura o bebê, com todo cuidado e enrolado em uma manta.

Antes do acidente, Joaquim ouviu um pedido de emprego de Rayline(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Antes do acidente, Joaquim ouviu um pedido de emprego de Rayline (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
A chegada da pequena Rayline na casa da família encerra um ciclo marcado pelo susto, apreensão, agonia, luto e inicia outro de felicidade com a bebê, a mais nova integrante da família Brito Campos. Já estamos no início da tarde de sexta-feira, o varal da casa está lotado com as roupas usadas em Santarém. A construção sem reboco, ornada por um belo jardim com grama japonesa e flores diversas e coloridas, começa a respirar o ar de nova vida, da possibilidade de recomeço.  

 

Com treze dias de vida, Rayline, a bebê, foi de barco para casa, em Fordlândia. Menos de um ano antes, o corpo da tia que empresta o nome para a recém-nascida fez o mesmo trajeto, no caixão, para ser enterrada no cemitério da cidade.
Amanhã, na igreja de Fordlândia, será realizada a missa de um ano de morte

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