
Como fruto de um namoro interrompido, o lojista de Belo Horizonte, Wellington Soares Gonçalves, de 37 anos, ganhou de presente a filha Gabriela, que mora com ele desde os dois anos e meio. Coruja, o pai dispensou babá e assumiu a jornada dupla. Trocou fralda, deu mamadeira, levou sozinho a filha ao pediatra. A receita revolucionária deu certo. Agora, aos 14 anos, Gabriela dá palpites nos novos relacionamentos do pai e dispensa ajuda para marcar unha no salão, coisa que ele já fez. “Mas o dever de casa continua sendo nossa briga diária”, diz. Gabriela vê a mãe diariamente e passa os fins de semana com ela, de 15 em 15 dias.
Pais com pê maiúsculo, como o paizão Wellington Gonçalves, ainda podem ser contados nos dedos da mão no Brasil. Não se trata de figura de linguagem. Para cada 10 mulheres que estão à frente da casa e dos filhos no país, apenas um homem se encontra na mesma situação. Segundo a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, de 2009, existem 10,8 milhões de mulheres chefiando sozinhas os lares e cuidando das crianças, ante 1,3 milhão de domicílios comandados por homens sem cônjuge e com filhos.
A tendência é passarem a existir cada vez mais pais presentes no Brasil, diante do puxão de orelha público que um empresário paulistano levou do Superior Tribunal de Justiça (STJ) há 15 dias. Ele foi condenado a pagar R$ 200 mil por ter abandonado a filha, em Sorocaba, no interior de São Paulo. A partir dessa primeira ação de abandono afetivo, é esperada uma leva de ações nos tribunais contra os pais, que estão sendo chamados à responsabilidade e vão ser cada vez mais cobrados a assumir suas funções.
“Quem põe filho no mundo tem de se responsabilizar. Se há criança envolvida, o estado tem de intervir para cobrir a dor causada pela omissão do pai. O filho pode até não gostar do pai, mas se pai o criou, levou à escola e deu bronca, ele cumpriu suas funções”, compara o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDfam). Ele é autor da primeira ação de abandono afetivo do país a chegar ao STJ que, em 2005, cassou a decisão do Tribunal de Justiça de Minas. “Na época, as ideias a esse respeito não estavam tão maduras. Com o processo, surgiram livros e discussões trazendo à tona a questão do abandono afetivo, que passou a ser melhor entendida”, completa.
Responsabilidade
Para Rodrigo da Cunha, advogado do movimento Pais Para Sempre, que defende a guarda compartilhada dos filhos, a criança pode até contar com uma terceira figura de referência para substituir o pai, no caso das mães solteiras ou separadas que criam os filhos por conta própria. “Mas nada é melhor do que pai e mãe. Quando falta algum deles, essa criança terá algum tipo de sofrimento”, acredita. Ele critica relacionamentos sem prevenção e planejamento. “Os filhos gerados por um ato inconsequente de amor ou de prazer têm direito a ter mães e a ter pais. Se não, fica muito fácil fazer filhos e largar com a avó”, afirma.
O baterista André Limão Queiroz, de 42 anos, não criou um nem dois filhos, mas quatro. “Fui pai aos 19 anos e coincidiu com o início da minha carreira de músico profissional. Uma vez que me vi pai, uma coisa fortaleceu a outra”, afirma ele, que teve Arthur, de 22, e Pedro, de 20, no primeiro relacionamento. “Estava namorando e resolvi morar com a mãe dele para ter o nosso filho, depois tivemos outro. É crucial para uma criança receber carinho, atenção e manter diálogo”, conta ele, que morou junto com os filhos durante três anos. No segundo relacionamento, nasceram Henrique, de 18, e Gabriela, de 14. “O Pedro e o Henrique fizeram um estágio lá em casa, indo morar comigo na adolescência. Agora, Henrique é músico de uma banda na Alemanha e a Gabriela eu vejo todos os dias. Pego minha filha na escola”, conta o pai participativo, que bate ponto diariamente no Colégio Sagrado Coração de Maria.

“Não fiz qualquer sacrifício. Fiz o que era o certo”, admite o engenheiro mecânico Glaucius de Lucca Braga, de 41 anos. Aos 20 anos, tentava reatar um relacionamento quando a namorada engravidou. Ainda no primeiro ano da faculdade, tornou-se pai solteiro de Rafael Braga, hoje com 20 anos, a mesma idade que o pai tinha quando ganhou o filho e, coincidentemente, prestava vestibular para o mesmo curso. “Foi difícil virar para ele e dizer que eu o amo muito e faria tudo de novo, só que de forma mais controlada. Ele virou para mim e respondeu: Não se preocupe, pai, estou me cuidando!”
Desde o início, Glaucius assumiu a criança. “Não tinha disponibilidade para casar, mas participei do parto com meus pais, acompanhei o pré-natal e contribuí financeiramente a vida toda”, explica ele, que chegou a enfrentar preconceitos das namorada, que não aceitavam se relacionar com homens que já tinham filhos. Ele se casou mais tarde com a enfermeira Lilian Aguiar e o casal teve dois filhos, Gabriel, de 7 anos e Guilherme, de 4 anos, que se relacionam bem com o irmão mais velho por parte de pai. “Até hoje, Rafael só me deu alegria”, conclui.
PALAVRA DE ESPECIALISTA: ANA CECÍLIA CARVALHO, PSICANALISTA E ESCRITORA
A função paterna
“Pelo viés da psicanálise, ainda que um pai se demita da função paterna, que está ligada ao exercício da transmissão da lei, a tudo o que se refere a permissões e proibições, muitas vezes essa tarefa é assumida pela mãe, que se encarrega de fazer a castração simbólica. No Brasil, o descompromisso dos homens é muito grande e as mães solteiras ainda prevalecem em maior número. Essa medida (do abandono afetivo), que parece ser uma punição aos pais, tem uma mensagem educativa que é chamá-los à responsabilidade. Não se pode garantir que vá ter uma função terapêutica, já que cada indivíduo vai viver a própria experiência de se tornar pai, mas não deixa de funcionar como alerta. A sociedade está dizendo para prestarmos atenção no abandono dos pais em relação aos filhos, algo como se dissesse: “Olha a que ponto chegamos.”
ENTREVISTA: RODRIGO DA CUNHA, PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA (IBDFAM)
O recado da Justiça
Autor da primeira ação de abandono afetivo do país a chegar ao STJ, em 2005, o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDfam) defende que ao adotar a tese do abandono afetivo a Justiça dá um recado: “Se puser filho no mundo, não interessa se foi planejado ou não, tem de se responsabilizar.”
A tese do abandono afetivo vai obrigar o pai a reconhecer o amor pelo filho?
É claro que não se pode obrigar ninguém a amar, mas a indenização existe para responsabilizar alguém que descumpriu a obrigação de pai, que é dar cuidados, colocar limites e educar.
Muitos se perguntam se essa indenização vai trazer o pai de volta ou aproximar o filho do pai.
Quando um filho vai à Justiça fazer essa reivindicação é porque já não tem mais jeito. Ele já nem espera mais por isso. Trata-se de um grito de desespero de um filho que se cansou de mendigar o amor do pai.
Nesse caso, o amor ou a falta dele passa a ter um preço?
É óbvio que não se pode monetarizar o afeto, mas alguém que descumpre a obrigação de cuidar dos filhos tem de responder por isso, nem que seja financeiramente. O valor é simbólico, até porque, por maior que seja a indenização, ela nunca vai ressarcir a dor sofrida pelo filho abandonado. Se não houver, porém, a possibilidade dessa reparação civil, seria o mesmo de o Estado dizer que o pai não precisa ter responsabilidade em relação à criação e à educação dela.