Dissonância cognitiva. Um termo pomposo, da área da psicologia, que nos ajuda a entender quando alguém, ou algum grupo – que pode ser um partido político – não se enxerga como praticante ou responsável por um ato ou uma situação por ele mesmo criticado ou repudiado. É o pensar e falar em desalinho com o agir. O texto da mais recente “Resolução política” divulgada pela alta direção do PT, em 6 de dezembro, é um exemplo vivo de dissonâncias cognitivas ao longo dos 30 parágrafos do documento, preparatório da disputa eleitoral em 2026. Se um marciano chegasse ao Brasil sem informação prévia sobre quem tem sido governo nos últimos três anos, ao ler por alto a Resolução do PT, diria estar diante de um grupo de oposição, que vê poucas razões para comemorar avanços e promete mudar a situação caso venha a assumir o poder.


A Resolução petista é a síntese das narrativas que o PT evocará para o público que quer alcançar, ao verbalizar a insatisfação do partido com “a situação que aí está” cujos desacertos o PT põe na conta da ultra-direita, dos golpistas, do Trump e do falido capitalismo global, conforme o culpado mais próximo se apresente. Nenhum número, nenhuma comparação estatística se destaca no documento de 11 páginas. A narrativa petista borboleteia sobre as conquistas assistenciais até a biosocioeconomia da Amazônia, e desta, flana pela defesa velada do ditador da Venezuela até chegar a uma “segurança pública democrática” e a uma “transição energética justa”, sem detalhar nenhum desses exóticos conceitos e estranhos alinhamentos. Ao mesmo tempo rebuscado na forma e inacessível no seu conteúdo propositivo, o texto do PT atinge seu ápice ao usar a palavra da moda: ressignificar. O PT agora quer ressignificar o Presidencialismo (?). Soa como na mensagem do príncipe de Lampeduza, que propunha a adoção de corajosas mudanças na sociedade (a tal ressignificação?) justamente para manter tudo exatamente como está.


Alguém poderia chamar de profunda esperteza intelectual a prática desse drible na realidade por meio de palavras cujo uso mais nos afasta de compreender a real situação do país do que nos esclarece sobre quais providências o partido de fato sugere para alcançar o tal nebuloso desenvolvimento. De fato, a proposta do PT sobre um eventual novo mandato para Lula só ganha algum esboço de praticidade quando sugere, no parágrafo 12 do texto, ser preciso acentuar o papel do “Estado como indutor do desenvolvimento”. Nesse particular, a pauta petista fica um ponto menos obscura. São desfraldadas as bandeiras do “Não” às privatizações, às emendas parlamentares que limitam o gasto comandado pelo Executivo, e defendidas as bandeiras do “Sim” a uma reforma tributária progressiva, ao combate dos juros altos, à Nova Indústria e, não obstante, ao fim da semana de trabalho de até 44 horas (que baixariam para 36), lembrando o sumido PAC e outras bondades arroladas no generoso texto. Nada é dito, porém, sobre como se alcançariam tais objetivos.


Merece destaque a convicção do PT na força do coletivo sobre o individual, na prevalência das decisões de governo sobre as iniciativas das pessoas, como indivíduos organizados em famílias, em empresas, em templos, em comunidades. O PT vende a ilusão das soluções prontas, operadas pelos detentores da máquina pública. O espaço do incentivo para que cada cidadão procure dar o melhor de si é mero detalhe na mobilização desse “coletivo” que açambarca vontades individuais. Não é por acaso que palavras como empreendedor e empresário não são mencionadas sequer uma vez no documento petista. Tampouco se encontrarão no texto as palavras cidadão, cidadania ou prosperidade, que seriam conceitos típicos de uma sociedade forjada na responsabilidade pessoal de cada membro da sociedade e no equilíbrio entre direitos e obrigações de todos, inclusive das crianças, jovens e idosos. Na visão oposta à proposta incapacitante que perpassa a Resolução petista, confiamos na capacidade de superação de cada ser humano, independentemente de sua condição.


Surpreende ainda mais que o termo “brasileiros” não conste do documento. O PT se enxerga como “a principal força transformadora do Brasil”. Governo e Estado prevalecem amplamente como conceitos que sufocam o espírito e a vontade individual e das famílias. Na mesma toada, nada se fala de “poupança”, muito menos de “capitalização” dos brasileiros, sobretudo por meio de uma Previdência social restaurada. O documento evita abordar o tema da “riqueza compartilhada” – aparentemente tão caro ao PT – pois isso exigiria encarar a questão da recuperação da credibilidade do INSS. Mas falar disso exigiria do PT fazer um difícil mea culpa diante da enorme erosão de confiança após a revelação da máfia dos descontos indevidos aos aposentados.

 

A Resolução política divulgada pelo PT, comandado por Edinho Silva, é um exemplo vivo de dissonâncias cognitivas ao longo dos 30 parágrafos

Gustavo Moreno/CB/D.A. Press


Paradoxalmente, para o PT de 2026 convém não abordar nada sobre corrupção na máquina pública, nem sobre os escandalosos prejuízos em empresas estatais, muito menos em salários pornográficos do alto escalão da República, dos apaniguados que dão suporte ao avanço ininterrupto da máquina do Estado sobre os bolsos do setor produtivo. Não por acaso, desde o advento do Real, o Estado endeusado pelo PT vem crescendo em ritmo muito superior ao PIB que paga a conta da comilança da máquina pública. Esse avanço do Estado sobre o território esmagado da produção já alcança os R$ 900 bilhões por ano. Nada justifica tamanho desvio de riqueza para o buraco da improdutividade estatal. No entanto, é este o crescimento que o documento do PT defende como essencial. Nesse particular, até que não há dissonância do discurso em relação à realidade: o crescimento que o PT pretende, se ficar até 2030, é o crescimento ainda maior da máquina estatal. A sinceridade do documento, neste caso, não deixa de ser comovente.

 

* Colaborou a psicóloga Maria Alice C. Gonçalves

compartilhe