A disputa entre o governo federal e os governadores de oposição sobre a política de segurança pública e a legislação penal não é apenas técnica ou operacional, mas política, histórica e federativa. O impasse na definição do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), adiada mais uma vez na Câmara, revela a persistência de um modelo de poder local armado, forjado há mais de um século, e que hoje se expressa na política nacional através de figuras como o deputado Guilherme Derrite (PP-SP), relator do PL Antifacção. Derrite é policial militar formado na cultura da antiga Força Pública paulista, que durante décadas funcionou como um verdadeiro exército estadual.

Criada em 1831 e consolidada na República Velha, a Força Pública de São Paulo foi a mais poderosa corporação policial do país. Seu efetivo, treinamento e armamento rivalizavam com os do Exército Nacional. Em 1932, ela constituiu o núcleo militar da Revolução Constitucionalista, quando São Paulo se insurgiu contra Getúlio Vargas em nome da Constituição, mas também da autonomia estadual. Derrotada militarmente, a Força Pública manteve o prestígio político e a identidade castrense.

Tornou-se símbolo do orgulho paulista, de autonomia e de autossuficiência, valores que moldaram a Polícia Militar após a fusão com a Guarda Civil, em 1970. Desde então, a PM-SP preserva a estrutura de um exército de província, com forte ethos hierárquico e doutrina de combate ao “inimigo interno”. Essa tradição explica por que São Paulo resiste, até hoje, a submeter sua política de segurança à coordenação nacional.

A lógica é a mesma de sempre: desconfiança em relação ao poder central e autonomia das armas regionais. A antiga Força Pública sobrevive não apenas nos quartéis, mas na mentalidade dos políticos que se projetam da segurança para o Congresso. Essa tradição, apesar de isolada após a derrota constitucionalista, sobreviveu inclusive ao regime militar, que também deu às demais forças policiais do país uma formação militar.

Ex-oficial da ROTA, uma tropa de elite criada em plena ditadura militar, Derrite transformou essa herança institucional em discurso político. Sua carreira foi construída sobre a ideia de que a criminalidade deve ser tratada como guerra e o policial, como soldado de trincheira. Secretário de Segurança de São Paulo, no governo de Tarcísio de Freitas, por indicação do ex-presidente Jair Bolsonaro, deixou o cargo e reassumiu o mandato de deputado federal com o propósito de articular a pauta de endurecimento penal e de equiparação das facções criminosas a organizações terroristas.

Derrite não é um caso isolado: ele expressa uma cultura política de extrema-direita que concebe o Estado como força tutelar e disciplinadora, não como mediador de direitos. É sob essa lente que a segurança se converte em instrumento de controle social e afirmação de poder regional. Como relator do PL 5.582/2025, Derrite inicialmente propôs que o tráfico e o comando de facções fossem enquadrados como crimes de terrorismo, deslocando o tema da esfera da segurança pública para o da segurança nacional. Essa é a doutrina da “guerra interna” – e a negação do princípio constitucional segundo o qual a segurança é dever do Estado e direito do cidadão.


Impasse continua


Diante da resistência de órgãos de Estado como o Ministério Público federal, a Polícia Federal e a Receita Federal, além juristas, magistrados e especialistas em segurança pública, foi obrigado a recuar. Entretanto, mas não desistiu de esvaziar a ação desses órgãos, transferindo seus recursos para os governos estaduais na terceira versão do seu relatório sobre o chamado Novo Marco da Segurança Pública. A proposta encontra aderência na Câmara porque há muitos parlamentares enrolados no Supremo Tribunal Federal (STF), por causa de desvios de recursos de emendas parlamentares, que são investigados pela PF, Receita e PGR e, mais uma vez, querem se blindar dos processos.

A proposta da PEC do SUSP, inspirada no modelo do SUS, busca integrar as forças de segurança sob coordenação da União, com interoperabilidade de dados e comando conjunto, parece um óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues. Trata-se de enfrentar o crime organizado que atua em escala nacional, com base de inteligência e ação cooperada dos órgãos de inteligência. O problema é que os governadores de oposição – especialmente Tarcísio de Freitas (SP) e Cláudio Castro (RJ) – veem a medida como invasão de competências.

Criaram o chamado Consórcio da Paz, uma confederação de governos estaduais que funciona como frente política paralela ao Ministério da Justiça. O gesto de Castro ao enviar mensagens a Donald Trump, pedindo o reconhecimento do Comando Vermelho como organização terrorista, escala o conflito e ultrapassa o debate jurídico. É um gesto de soberania paralela, com viés de secessão. Reflete um país dividido ideologicamente, que perdeu coesão social e não tem um projeto unificador.

Com Operação Contenção, no Rio, na qual morreram 121 pessoas, entre as quais quatro policiais, a proposta de adoção de leis de exceção, com grande fração do território tomada pelo crime organizado, encontra aderência na opinião pública. Resultado: o Estado passou a agir como força ocupante em zonas de guerra, num ambiente saturado pela elevação da criminalidade, haja vista o roubo de celulares, em alguns casos, mediante latrocínios, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas é uma fuga para a frente diante do fracasso dos governos estaduais no combate à criminalidade.

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