Hoje completam exatamente 330 anos desde que Zumbi dos Palmares foi assassinado. O líder do maior quilombo brasileiro teve a cabeça decapitada e exposta em praça pública para que toda pessoa negra soubesse o que aconteceria caso ousasse querer deixar de ser escravizada.

Aprendi isso numa aula de História quando eu tinha 13 anos de idade, lá na Escola Estadual Elísio Carvalho de Brito, no bairro General Carneiro, na histórica Sabará, periferia da região metropolitana de Belo Horizonte.

 

 

Meu letramento racial começou no silêncio simples do barracão de telha de amianto. Não havia livros. Não havia teóricos. Não havia sequer o nome “militância” para eu associar a qualquer coisa. Mas havia um rádio. Havia os discos de vinis que meu pai colocava para rodar quando descansava das batalhas diárias.

E havia, sobretudo, uma menina preta tentando compreender por que o mundo lhe parecia tão estreito. Foi muito antes de eu imaginar que a universidade tinha uma porta que pudesse se abrir pra mim que ouvi Racionais me perguntarem: “Modelos brancas no destaque, as negras onde estão?”

E aquela pergunta se alojou no músculo do meu pensamento. Ali, quatro homens pretos favelados, Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue, plantaram o primeiro signo da minha consciência,  como quem acende uma vela num quarto escuro para mostrar que o cômodo sempre teve mais portas do que eu imaginava. Ecoavam pela Rádio Favela, essa rádio pirata que era resistência pura, construída pela teimosia luminosa  e resistência de Misael Avelino, outro homem preto.

E foi Bezerra da Silva, com sua poesia de morro, com sua afiada percepção da miséria, quem me ensinou que desigualdade não é destino: é projeto. Foi ouvindo seus discos que comecei a entender as desigualdades sociais, aprendendo a problematizar e a não naturalizar a escassez que marcou grande parte da minha vida.

Cresci ouvindo “O ladrão foi lá em casa”, com aquele ladrão que enlouquece ao ver tanta miséria “em cima de um cristão” e vai parar no Pinel gritando: “Pega eu, que sou ladrão! Não assalto mais um pobre, nem arrombo um barracão.”


Há outra música dele, cujo nome não lembro, que me ensinou a não cair na esparrela de criminalizar a favela, nem nos estereótipos midiáticos que fazem pobre aplaudir chacinas como as que ocorreram há pouco tempo no Complexo da Penha e no Alemão, no Rio de Janeiro.

Ele dizia: “E se vocês estão a fim de prender o ladrão, podem voltar pelo mesmo caminho. O ladrão está escondido lá embaixo, atrás da gravata e do colarinho (...). No morro ninguém tem mansão, nem casa de campo pra veranear, nem iate pra passeios marítimos, nem avião particular. Somos vítimas de uma sociedade famigerada e cheia de malícias. No morro ninguém tem milhões de dólares depositados nos bancos da Suíça.”

Foi através de Leci Brandão que conheci Zé do Caroço. Com a grandiosa Dona Ivone Lara, aprendi que um sorriso negro traz, sim, felicidade. E com Jorge Aragão tive de aceitar que “quem cede a vez não quer vitória; somos herança da memória, temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história.” Infelizmente, só conheci o Ilê Aiyê já adulta, mas ainda hoje me encanto com a nossa beleza negra ouvindo “Deusa do Ébano”.

Só em 2011, aos 28 anos, descobri a literatura negra infantil pela Mazza Edições. E foi nesse mesmo ano que li, pela primeira vez um romance escrito por uma mulher negra - "A Cor Púrpura", de Alice Walker. Dali em diante, meu mundo se ampliou. Porque ninguém deseja aquilo que não sabe que existe, e as páginas daquela história me mostraram que havia um caminho onde eu só enxergava muro.

A Lei 10.639 já brilhava, tímida mas viva, nas bibliotecas das escolas municipais. Eu me esbaldava ali depois do expediente, como quem mata a sede depois de anos de deserto. Entrei na faculdade pelo PROUNI, bolsa integral. Trabalhava como manicure de dia, estudava à noite e terminei duas graduações com uma única bolsa.

Fiz especialização em uma instituição pública. Tentei o mestrado na UFRJ  em 2016, 2017, 2018, 2019 e só fui aprovada em 2020. Antes mesmo de terminar o mestrado, já estava aprovada no  doutorado e em outro mestrado, que concluí esta semana.

E digo tudo isso não por vaidade (mesmo me sentindo orgulhosa), mas porque existe uma parcela considerável de pessoas negras totalmente alienadas, por discursos fáceis acumulando milhares de seguidores nas redes sociais, que tentam deslegitimar quem milita pelo letramento racial.

Chamam pretos letrados de “pretos da casa branca”, como se pensar fosse traição, como se estudar fosse abandono, como se a ignorância fosse medalha, ostentando a ignorância e incentivando outras pessoas a permanecerem ignorantes também.

Ter acesso à educação não é privilégio, é fresta, é fôlego, é a porta mínima que se abre para quem sempre teve o mundo inteiro fechando janelas. Privilégio é outra coisa; privilégio é o que nunca esteve ao alcance das mãos calejadas que me criaram. Educação é direito básico, mas insistem em tratá-la como se fosse luxo, joia, exceção.

É preciso uma falta imensa de criticidade, dessas que afundam o pensamento e turvam o olhar, para dizer que filhos e filhas de trabalhadores negros braçais, que mal puderam concluir o ensino fundamental, seriam “privilegiados” por finalmente tocarem o básico depois das políticas de igualdade racial. O básico. O mínimo. Aquilo que para tantos sempre foi garantido, mas para nós chegou tarde, e só chegou porque lutamos.

E hoje, 330 anos após o assassinato de Zumbi, aquele que ousou saber ler e escrever quando até senhores de engenho não sabiam, aquele cujo conhecimento era visto como ameaça , eu celebro o que me coube. Celebro ter pisado nesse chão que meus ancestrais não puderam pisar. Celebro cada página virada, cada sala de aula, cada oportunidade arrancada do impossível.

E me alegro por transformar esse mínimo que me deram em semente: semente de letramento, de consciência, de beleza preta, que reparto com tantas pessoas negras de todas as idades, nas rodas de conversa, nas palestras, nas aulas que ministro utilizando as músicas que citei anteriormente,  pinturas,  filmes, e livros.

Porque, se o mundo ainda insiste em negar o óbvio, nós seguimos escrevendo o futuro com as mãos que eles tentaram amarrar.

E seguimos letrados.

E seguimos vivos.

Seguimos dizendo Salve Zumbi dos Palmares

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