O ex-presidente Jair Bolsonaro possui uma certa atração por causar problemas para si mesmo que impressionaria até mesmo o Recruta, o mais incauto dos Pinguins de Madagascar. Já pensei em algumas opções, mas a que parece mais factível é que ele tem por esporte causar náuseas nos seus advogados periodicamente para lhes testar os nervos.

 

A última foi ingressar, em pleno carnaval, imediatamente depois de estourar uma operação da Polícia Federal, na embaixada da Hungria e lá permanecer por dois dias. Da forma mais cínica do mundo, o ex-presidente não negou e nem desconversou a respeito, confirmando que, de fato, ficou perambulando por lá em meio ao carnaval e aos rumores de uma eventual prisão sua.

 

Pois bem, vamos colocar a situação como ela legalmente se impõe. Até um dia antes deste fatídico evento, não havia motivo para prisão cautelar e o ex-presidente não tem condenação criminal. Logo, como qualquer cidadão brasileiro, ainda que ele mesmo não concorde muito com esta afirmação, não havia fundamentação legal para a sua prisão.

 

Pelas bandas de cá, legalmente falando (porque no mundo da vida o batido é outro), uma pessoa pode ser presa por sentença penal condenatória transitada em julgado ou por prisão cautelar, que é uma prisão processual que possui requisitos muitos específicos e rígidos. Os principais requisitos são garantia da ordem pública, garantia de instrução processual, da ordem econômica e aplicação da lei penal.

 

Assim com a maioria dos casos de prisão no Brasil, no caso de Bolsonaro não havia ameaça à ordem pública. Apesar das desenfreadas prisões, não sou daqueles que prefere o infortúnio de todo mundo em razão do infortúnio de alguns. Prefiro continuar afirmando que garantia da ordem pública é uma falácia para prender quem o juiz quer prender porque cabe qualquer fundamentação.

 

Não era o caso. Também não era o caso da ordem econômica porque nada tem em relação com o caso em apuração. Tampouco há indício de que o ex-presidente age para atrapalhar ou impedir a instrução processual. O ponto focal é a garantia da aplicação da lei penal.

 

O que é isso em termos pragmáticos? É fugir. Se o acusado “dá no pé” no meio do processo, entende-se que ele quer frustrar a aplicação da lei penal caso sobrevenha uma sentença condenatória. É exatamente o que aconteceu com o Robinho, percebeu? Ele viu a premência de ser condenado e tratou de alçar voo e procurar refúgio em outras bandas.

 

Pois bem, daí recebi uma enxurrada de manifestações questionando porque o ex-presidente não poderia visitar a embaixada húngara e porque esta visita poderia lhe causar a decretação de prisão preventiva. Vamos uma coisa de cada vez: a visita é, no mínimo, suspeita.

 

Uma entidade estatal não funciona regularmente em feriados e tampouco uma embaixada estrangeira hospeda pessoas para dias relaxantes. Soma-se a isso que há uma infinidade de exemplos de pessoas que se abrigaram em embaixadas para não serem presos, como o famoso caso de Julian Assange, que passou anos a fio na embaixada equatoriana sediada em Londres e, por isso, longe do alcance do Estado Britânico.

 

E isso ocorre não necessariamente porque a embaixada é território estrangeiro, como vulgarmente se fala no linguajar coloquial. A embaixada húngara fica no Brasil e, portanto, em território brasileiro. O problema é que este território tem uma proteção especial, sendo classificado como inviolável.

 

Essa regra está prevista na Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas, que estabelece a regra da inviolabilidade dos locais, documentos e correspondências das missões diplomáticas. É uma regra universal e que garante que, nestes locais, informações sensíveis de Estados estrangeiros circulem de forma segura – o que, inclusive, leva à sua ampla utilização para espionagem.

 



 

Não se engane, todo mundo faz isso, todo mundo sabe, mas o protocolo é fielmente seguido exatamente porque todo mundo faz isso. Então um Estado não pode invadir uma embaixada para prender alguém, ainda que seja um nacional seu, porque o território da sede da embaixada, apesar de nacional, é inviolável.

 

Se você já ligou os pontos, concluiu que ir morar em uma embaixada amiga (que não está muito preocupada com as relações com o Brasil porque são ridiculamente pequenas as interações e, consequentemente, muito baixos os impactos de um corte) é uma forma de fugir da aplicação da lei penal. E é porque naquele local a Polícia Federal não pode fazer “toc toc”.

 

Logo, com as próprias mãos, o ex-presidente cria um fundamento que, até então, não existia para subsidiar um decreto de prisão preventiva. Ousaria dizer que talvez tenha sido até de propósito para criar o estresse e testar as consequências, dado que o vazamento de imagens internas da embaixada foi curiosamente conveniente para todo esse rebuliço e ainda mais curiosamente cedido para o The New York Times.

 

Pois bem, pelo sim pelo não, a seguir o rigor da lei, há fundamento para a prisão preventiva. Entretanto, o direito não é assim tão matemático e há uma série de variáveis que influenciam nesta análise e imagino que a tendência é não decretação de prisão.

 

Esse episódio todo me fez lembrar do meu primeiro cliente criminal, quando ainda tinha experiência na advocacia contada em dias. Era um moleque de 18 anos preso em flagrante por tráfico de drogas em bar de uma favela de BH com R$ 22 no bolso em notas de R$ 5 e de R$ 2. Você não entendeu errado: ele foi preso por tráfico de drogas porque estava com R$ 22 em notas de R$ 5 e de R$ 2.

 

Mas e a droga? Não tinha. E o boletim de ocorrência falava que não tinha. E os policiais confirmaram que não tinha. Entretanto, a atitude dele era suspeita. Eu, na minha ingenuidade da jovem advocacia, logo conclui: caso fácil. Clássico cabimento de habeas corpus, daqueles bem bobinhos de livro mesmo.

 

Pois bem, foram seis pedidos negados: um relaxamento de prisão negado pelo juiz de primeira instância; um habeas corpus negado pelo tribunal; um Recurso em habeas vorpus negado pelo STJ e um recurso extraordinário negado pelo STF. Depois foi mais um HC para o TJ, também negado, ou recurso em HC para o STJ negado.

 

Neste meio tempo: 1 ano e 10 meses de prisão preventiva. Ao final do processo você acha que ele foi absolvido? Não. Ele foi condenado em primeira instância a 4 anos e 6 meses de reclusão. Em recurso para o TJ, a decisão foi mantida, com uma frase do desembargador que eu nunca mais vou esquecer: “conheço o entendimento consolidado do STF de que nestas hipóteses cabe a redução da pena e conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, mas não vou aplicar”.

 

Com uma manifestação dessa, que inclusive constava por escrito no voto, interpus recurso extraordinário para o STF que foi provido e a pena alterada para 1 ano e 8 meses de prisão, com a respectiva conversão da pena privativa de liberdade em penal restritiva de direitos.

 

Nunca esquecerei da cara da juíza da execução penal sem saber o que fazer na minha frente, pois ela precisava converter a pena de prisão em pena alternativa, mas a pena era de 1 ano e 8 meses e ele ficou 1 ano e 10 meses preso, de modo que ele já tinha 2 meses de “crédito”. A aplicação da pena era a extinção da pena sem converter, “descumprindo” a decisão do STF.

 

 

Ou seja, a atitude suspeita que dá prisão preventiva varia de caso a caso...

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