Ninguém nunca escreveu um tratado filosófico sobre as canecas promocionais que se acumulam nos armários da cozinha, mas deveria. Aquelas que ostentam a logo de empresas que já faliram, eventos que ninguém lembra ter comparecido, ou frases motivacionais que perderam o sentido na terceira lavagem. Estão lá, empilhadas precariamente, testemunhas silenciosas de nossas pequenas rendições ao marketing corporativo.
Ao lado delas, os copos de requeijão formam uma dinastia plebeia. Começaram humildes, abrigando um laticínio industrializado, e agora servem água aos convidados menos nobres ou viram suporte para escovas de dente no banheiro. Que trajetória curiosa: do café da manhã à higiene bucal, sem passar pelo lixo. Uma “vulgaridade reencarnada” doméstica que nem budistas foram capazes de prever. Como definiu o brilhante Humberto Werneck sobre esse impostor da cozinha: “Como no alcoolismo, não se fica no primeiro copo”.
Abra a gaveta da cozinha e contemple o caos organizado das tampas sem tupperware e dos tupperware sem tampa. Isso me irrita! Existe ali uma matemática misteriosa, uma equação impossível, na qual a soma das partes nunca forma um todo utilizável. Quantas vezes você guardou sobras num pote e só descobre que a tampa correspondente desapareceu como se tivesse sido abduzida por alienígenas com fetiche por plástico barato?
No mesmo reino das incompletudes domésticas, o controle remoto da TV exibe suas cicatrizes. A fita crepe cobrindo o compartimento das pilhas no estilo camisa do Vasco, os botões gastos de tanto uso, aquele "click" que só funciona se você bater o controle contra a palma da mão umas 20 vezes. Alguns não se esquecem do Uri Geller, o falso paranormal dos anos 1970: “funciona, funciona, funciona” e a porcaria do controle não funciona. É um veterano de muitas batalhas lutando para manter sua relevância num mundo que avança implacavelmente para o controle por voz ou pelo celular.
Há uma gaveta especial – geralmente a do escritório – onde os carregadores de celulares antigos vão para não morrer, e chaves desiludidas procuram por suas fechaduras. Formam ali uma estranha floresta de cabos retorcidos e conectores incompatíveis com qualquer aparelho fabricado neste século. Ainda assim, resistimos em jogá-los fora. "E se eu precisar um dia?" – pergunta-se o colecionador involuntário, como se Nokia e Motorola fossem ressuscitar dos mortos numa versão tecnológica da Páscoa. A mão da Joana coça pra jogar tudo fora. Eu resisto, pego amor fácil e não consigo largar as tralhas.
Nas paredes da geladeira, os ímãs de viagem contam histórias de lugares que visitamos (ou que alguém visitou por nós). Paris, Florianópolis, Aparecida do Norte, como se precisássemos de uma miniatura da Torre Eiffel para provar que estivemos lá ou uma réplica do Cristo Redentor para atestar nossa passagem pelo Rio. Hábito brega que reafirma nossa breguice e lembra nossos perrengues em aeroportos.
No banheiro, a gaveta esconde seus próprios segredos. Pomadas meio usadas para problemas que já curamos (ou desistimos de curar), preservativos com data de validade vencida há tanto tempo que poderiam estar aptos a serem expostos num museu de arqueologia sexual. Guardamos esses itens num limbo entre o descarte e o uso, como se a qualquer momento pudéssemos desenvolver um prurido inesperado no meio da noite ou uma paixão avassaladora que justificasse sua permanência ali.
Na estante, os livros de autoajuda comprados em momentos de desespero existencial formam uma biblioteca de promessas não cumpridas. "Como se tornar milionário em 30 dias", "Desperte o gigante interior" – todos com os primeiros capítulos lidos e marcados, abandonados quando descobrimos que a transformação pessoal exige mais esforço que a leitura de parágrafos motivacionais. Penso em doa-los, mas tenho compaixão dos receptores, desisto.
No quarto, a gaveta das roupas que não servem mais (mas que poderiam servir um dia, quem sabe?) é o arquivo de nossas expectativas corporais. O macacão jeans da época da faculdade, a camisa que encolheu na primeira lavada, mas que nos recusamos a doar. Os frascos vazios de perfumes caros permanecem no toucador como pequenos monumentos ao luxo efêmero. Cristais lapidados contendo apenas memórias olfativas, lembrando-nos que até mesmo os aromas mais caros e sofisticados acabam, deixando apenas vidro bonito e arrependimento por não termos sido mais econômicos nas borrifadas.
E, finalmente, escondido em alguma gaveta, o álbum de fotografias físicas que ninguém mais vê, substituído por milhares de imagens digitais que só a Rafaela, minha filha de 11 anos que, vez por outra, explora para rir de suas brincadeiras na infância que vai ficando para trás.
Somos acumuladores de insignificâncias, curadores de um museu particular. Nossa casa é esse grande depósito de coisas que não conseguimos descartar – seja por apego emocional, egoísmo, preguiça ou aquela superstição moderna de que, no momento exato em que jogarmos algo fora, descobriremos que precisávamos desesperadamente dele.
Talvez seja essa nossa forma de lutar contra a impermanência. Enquanto nossos corpos envelhecem e nossas memórias falham, as canecas promocionais, os copos de requeijão, os tupperware sem tampa, os carregadores obsoletos e as plantas de plástico permanecem. São nossos pequenos monumentos ao tempo que passou, âncoras materiais num mundo cada vez mais virtual e liquido.
E quando partirmos, deixaremos para trás esse acervo curioso, esse inventário de pequenas inutilidades que, juntas, contam mais sobre quem fomos do que qualquer obituário jamais poderia. Já é novamente Natal! Vê se desapegam, cara.
