No tempo em que as bactérias ainda respeitavam a penicilina, talvez o mundo fosse mais simples. Hoje, no entanto, vivemos num campo de batalha invisível no qual os antibióticos perdem sua guerra silenciosa. Quem diria que aqueles minúsculos seres, invisíveis ao olhar desarmado, pudessem um dia rir das nossas armas químicas com tamanha desenvoltura?
Lembro-me de meu avô, na roça, que dizia que remédio era "tiro certo". Bastava uma injeção e pronto: a febre baixava, a dor sumia, o mundo voltava a brilhar. Ah, Seu Lozico, se o senhor soubesse que os micróbios aprenderam a dançar conforme a música, que eles agora têm pós-graduação em sobrevivência e doutorado em resistência!
O caso de Derek, publicado recentemente na revista Clinical of Infectious Diseases, é emblemático desse novo mundo. Setenta e nove dias na UTI, um acidente de carro que lhe estilhaçou a bacia, e depois uma infecção que nenhum antibiótico conseguia domar. A medicina moderna, com toda sua parafernália tecnológica, curvava-se diante daquele inimigo microscópico, que fazia sua festa no corpo do rapaz.
É curioso como nos tornamos deuses da técnica e mendigos da eficácia. Colocamos homens na Lua, robôs em Marte, deciframos o genoma humano, criamos a IA, mas um punhado de bactérias pode nos reduzir à impotência terapêutica.
Derek tinha enterococos resistentes à vancomicina e outras bactérias igualmente resistentes. Seu corpo, outrora forte e jovem, agora era um campo de concentração onde micróbios faziam a festa. A radiologiaintervencionista colocou um dreno, que entupiu. A ortopedia informou que o metal das órteses, que mantinha seus ossos unidos, era o único elemento que impedia que ele se desmanchasse como um castelo de areia na maré alta.
Penso nos "Dereks" que atendo diariamente e quantos temos no Brasil, em enfermarias superlotadas, onde médicos fazem malabarismos com antibióticos de última geração porque os demais já não funcionam.
Penso nos hospitais do interior, onde o arsenal terapêutico é ainda mais limitado, e onde a resistência antimicrobiana avança como fogo no paiol.
A médica americana tomou a difícil decisão de escrever uma nota de "não reanimação" no prontuário. Decisão sábia, ainda que dolorosa. Há momentos em que a medicina precisa reconhecer seus limites. Não somos deuses, afinal.
O que me impressiona na história de Derek é a transformação da médica. Ela confessa que, com o tempo, foi fazendo aquisições involuntárias de cada paciente. Lembrei-me de Guimarães Rosa e seu "viver é muitoperigoso". Viver é colecionar pedaços de almas alheias, fragmentos de histórias que nos modificam e que carregamos como cicatrizes invisíveis.
Enquanto isso, nos laboratórios farmacêuticos, a corrida por novos antibióticos segue em ritmo lento. Desenvolver uma nova droga custa bilhões, e as bactérias podem desenvolver resistência em questão de meses. É um investimento de alto risco, e o capitalismo não gosta de arriscar sem garantia de retorno. Preferem investir em medicamentos para doenças crônicas, que o paciente tomará pelo resto da vida, garantindo lucro perpétuo para os acionistas.
Lembro-me de minha avó, que guardava comprimidos de antibióticos "para emergências". Ela não sabia que estava criando, em sua caixinha de remédios, um pequeno laboratório de resistência antimicrobiana. Quantos de nós não fizemos o mesmo? Tomamos antibióticos por três dias, melhoramos e guardamos o resto "para a próxima"? Pequenos crimes contra a humanidade futura, cometidos na inocência da ignorância. O assustador é que vejo o mesmo nos hospitais. A deselegância do raciocínio clínico transforma tudo em infecção. Resultado: bactérias intratáveis circulando de mão em mão entre os pacientes.
A médica conta como foi difícil ver Derek partir para uma casa de repouso, sabendo que suas chances eram mínimas. Como foi doloroso trocar o jaleco branco dela pelo pijama do serviço de oncologia, quando descobriu que ela própria tinha um câncer de mama. A vida tem dessas ironias: de "curandeira" a paciente em um piscar de olhos.
E assim vamos todos nós, médicos e pacientes, navegando neste oceano de incertezas. Hoje, prescrevemos antibióticos, amanhã podemos estar implorando por um que funcione em nosso próprio corpo. As bactérias estão aqui há bilhões de anos, muito antes de nós. Elas sobreviveram a eras glaciais, meteoritos e cataclismos. Quem somos nós para achar que as venceríamos com algumas moléculas sintéticas? Talvez seja hora de um pouco mais de humildade científica, de reconhecer que estamos todos, no mesmo barco furado, remando contra a correnteza do tempo.
Enquanto isso, Derek e tantos outros seguem suas jornadas em direção ao inevitável. E nós, profissionais de saúde, continuamos nossa luta diária, sabendo que algumas batalhas já estão perdidas antes mesmo de começarem. Ainda assim, digladiamos em nome do amor e da vida. Como disse o inesquecível Chico Anysio, "eu não tenho medo de morrer, tenho pena".
A resistência antimicrobiana é nossa "infecção terminal" coletiva, um lembrete de que a arrogância humana sempre encontra seu limite nas leis implacáveis da natureza. E nesse jogo, as bactérias têm alguns bilhões de anos de vantagem evolutiva. Diante disso, humildade e canja de galinha não fazem mal a ninguém.
