Nas manhãs de domingo, observo da janela o movimento sincronizado dos pássaros. Riscam o céu em formações precisas, como se cada um soubesse exatamente seu lugar na grande coreografia da vida. Nenhum deles questiona a direção. Nenhum hesita quando o bando faz uma curva abrupta. Seguem, simplesmente seguem.


Lembro-me do Sr. Moacir, paciente que atendia regularmente durante o internato rural em Jequitaí, no Norte de Minas. De origem tupi-guarani, contava-me sobre seus ancestrais que caçavam em grupo, compartilhavam o alimento, defendiam-se mutuamente dos predadores. "Doutor, o homem só sobreviveu porque aprendeu a andar em bando", dizia ele, com a sabedoria de quem carrega na pele a memória de milênios.


E tinha razão. Nossos ancestrais hominídeos, frágeis diante das feras e intempéries, encontraram na união sua força. Somos, por natureza, criaturas de bando. Mas o que nos salvou também pode nos destruir.


Há algo de terrível na beleza dessa dança coletiva. Algo que me faz pensar naqueles 918 corpos em Jonestown, 1978, todos alinhados como pássaros caídos do céu. Beberam o veneno porque todos bebiam. Morreram porque a morte, naquele momento, era o movimento do bando, no qual o absurdo se normaliza pela simples força do número.

 


Lembro-me de ter atendido uma jovem que tentara suicídio. "Por quê?", perguntei. "Porque minhas amigas também tentaram", respondeu com a simplicidade de quem explica que usa certo tipo de roupa porque está na moda. O contágio suicida, fenômeno bem documentado na psiquiatria, é apenas mais uma manifestação do nosso instinto de bando levado às últimas consequências.


Ontem, enquanto esperava para ser atendido numa loja de telefonia celular, ouvi dois senhores discutindo política. "Votei nele porque todo mundo votou", dizia um. "Nem gosto dele, mas fazer o quê?". O outro concordava, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. E de fato é. Natural como a chuva, a fome, o medo.


As urnas, cavernas da vontade coletiva, muitas vezes não registram escolhas individuais ponderadas, mas o movimento sincronizado de bandos humanos, motivados pela vaidade manipuladora de poucos. Votamos como nossos pares, independentemente dos princípios éticos e morais de promessas vazias. Apenas seguimos tendências, abraçamos ideias não porque as compreendemos, mas porque estão em voga no nosso círculo social: “Tá bom, mas pode ficar melhor. Ou pior”.


Há uma ironia deliciosa nisso tudo. O mesmo mecanismo que nos fez dominar o planeta pode nos levar ao abismo. Como médico, vejo diariamente os estragos. Depressões desencadeadas pela inadequação ao grupo, ansiedades alimentadas pela necessidade de pertencimento, identidades fragmentadas por não conseguirem seguir o ritmo da dança coletiva.


Certa vez, um paciente me disse: "Doutor, na minha juventude, fui contra a corrente e quase me afoguei. Hoje, sigo o fluxo e me sinto morrer aos poucos". Receitei-lhe temporariamente antidepressivos, mas o que ele precisava mesmo era de uma nova tribo, um bando que acolhesse sua singularidade. Ou talvez precisasse aprender a voar sozinho, como aquelas raras aves que se desprendem do grupo e traçam rotas próprias.


O perigo do comportamento de bando não está no instinto gregário em si, mas na abdicação do pensamento crítico que frequentemente o acompanha. As páginas da história estão inundadas de sangue derramado em nome dessa cegueira coletiva. Holocaustos, genocídios, guerras - todos alimentados pela disposição humana de seguir ordens, de marchar no ritmo do tambor, de pertencer a algo maior que si mesmo, mesmo que esse algo maior seja um lobo em pele de cordeiro.


E como é fácil criar monstros em tempos digitais! Basta um algoritmo eficiente, algumas notícias manipuladas, um inimigo comum bem construído, e pronto: temos um bando pronto para marchar, para votar, para odiar - ou para se autodestruir.


Nas redes sociais, vejo diariamente pequenos suicídios morais. Pessoas abandonando valores, traindo princípios, apenas para se manterem alinhadas com seu grupo. A “folie collective” digital, menos letal(?) que a de Jonestown, mas igualmente preocupante em suas implicações para o tecido social.


Talvez seja por isso que escrevo essas crônicas semanais. Uma tentativa de pegar as pedras do caminho e jogá-las na engrenagem do pensamento de bando. Uma provocação para que o leitor, por um instante que seja, saia da formação e observe o voo de fora. Não que eu mesmo esteja imune. Adoro ir a campo de futebol e sofrer com o Galo. Também sigo bandos e me deixo levar. Somos todos vulneráveis a essa antiga programação da nossa espécie. A diferença talvez esteja na consciência do processo, na capacidade de perceber quando estamos sendo arrastados pela correnteza para o fundo do poço.


Como dizia minha avó: "Filho, se todo mundo pular no poço, você pula também?". A pergunta infantil carrega uma profunda verdade antropológica: sim, pulamos. A história humana é, em grande parte, a história de pessoas pulando em poços porque viram outras pulando.


No consultório, tento ser com meus pacientes essa voz que convida à pausa, à reflexão. Não para negar nossa natureza gregária, mas para usá-la com sabedoria. Afinal, acredito na fragilidade do equilíbrio: voar em formação quando isso nos fortalece, e ter a coragem de traçar rotas próprias quando o bando se dirige ao precipício.


Os pássaros continuam sua dança no céu do domingo de Belo Horizonte. Belos, livres, instintivos. Nós, com nossos devaneios e consciência quase reflexiva, temos o privilégio e o fardo de questionar nossos passos. De perguntar: “Para onde vamos?”, “Por quê?” e “A que custo?”.


Perguntas incômodas, sem dúvida. Mas talvez sejam essas perguntas que nos salvem de nós mesmos.

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