A um brasileiro que trabalha no exterior, se for atento, o Brasil aparece de maneiras inesperadas. Em meu livro “Geografia do tempo” (2024) menciono como o túmulo, em Malaca, de um herói malásio do século 15, Hang Kasturi, figura talvez mais mitológica do que real, me levou até Clarice Lispector.
Essas reações patrióticas respeitam somente a geografia e o tempo emocionais, não os factuais.
Uma notícia na imprensa angolana chama minha atenção: leio sobre as obras de restauração da Fortaleza do Penedo, em Luanda. Construído no século 17 pelo colonizador português, o edifício já serviu de forte militar, lugar para reter pessoas escravizadas e prisão política. Foi um dos locais onde, em 4 de fevereiro de 1961, teve início a Guerra de Independência de Angola. Os portugueses o chamavam então de Casa de Reclusão Militar.
A restauração da fortaleza é apoiada financeiramente pelo governo português. Ela se tornará o Museu da Luta de Libertação Nacional. É uma bonita ideia, que a recuperação do edifício seja uma ação conjunta dos dois países. À imprensa, o embaixador de Portugal, Francisco Alegre Duarte, declarou ser a obra “um gesto de maturidade na relação entre iguais”. O pai do próprio embaixador, Manuel Alegre, político e escritor, ganhador do Prêmio Camões em 2017, foi prisioneiro, na fortaleza, da ditadura salazarista.
Meu interesse principal, ao ler a notícia no jornal, decorreu do fato de que, em 1792, o inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto, ao chegar a Angola em julho daquele ano, degredado pelos portugueses, foi primeiro aprisionado por algumas semanas, talvez cerca de um mês, na Fortaleza do Penedo, a caminho do presídio de Ambaca, no interior de Angola, onde morreria de uma doença tropical em agosto, poucos dias depois de lá chegar. Alvarenga Peixoto não aportou sozinho a Luanda. No mesmo navio foram obrigados a viajar, também degredados pela sua participação na conjuração, José Álvares Maciel e Luiz Vaz de Toledo Piza. Álvares Maciel permaneceu na enfermaria da Fortaleza do Penedo, doente, até ser trasladado a Massangano. Cláudio Manuel da Costa, como sabemos, suicidou-se ou foi suicidado, preso em Vila Rica, já em 1789. Tomás Antonio Gonzaga foi degredado para Moçambique.
Minha fonte principal para a história dos poetas da Inconfidência – ou Conjuração – Mineira é o volume “A poesia dos inconfidentes”, publicado pela Nova Aguilar em 1996 e organizado por Domício Proença Filho. O material crítico inclui os “Autos da devassa”, inclusive os dois interrogatórios de Alvarenga Peixoto, em novembro de 1789 e janeiro de 1790, na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, onde se encontrava detido. Em sua biografia sobre o poeta e inconfidente na edição da Nova Aguilar, M. Rodrigues Lapa nos conta que, preso no Rio, “sem o amparo da família, os afagos dos filhos e da mulher, aquele homem sentiu-se naufragar”. Em seu segundo interrogatório, delatou os companheiros, “desfazendo-se em mesuras e servilismos”.
O segundo interrogatório provê porém uma leitura fascinante. Trata-se de uma verdadeira obra literária, não pelo estilo, mas pela forma narrativa. É escrita, essa segunda inquirição, como um conto. Vemos Alvarenga Peixoto indo e vindo, ouvimos suas conversas com os amigos conjurados, somos informados de detalhes que tornam tudo vívido, quase 240 anos depois. O texto nos prende desde as primeiras linhas, quando nos contam que o “respondente”, nosso poeta, “se resolvia a narrar tudo com pureza, deduzindo tudo desde o seu princípio na forma seguinte: Que no princípio de janeiro do ano de 1789…”. O que lemos a seguir lembra mais uma conversa de compadres em algum lugarejo do que uma conjuração para tornar Minas independente e implantar a República. O “respondente” ouve, alguém lhe conta, outro lhe pergunta, uma noite ele fica jogando cartas até às três da manhã, um dia há no jantar “peixe fresco, raro em Vila Rica”, Cláudio Manuel da Costa vem tomar café, Tiradentes é descrito como “feio” e “louco”.
Noto a frequência com que livros aparecem. A casa de um dos inconfidentes, Francisco de Paula Freire de Andrade – que viria ele também a morrer em Angola – aparentemente possuía uma importante biblioteca. Alvarenga Peixoto, descobrimos, lá costumava ir pedir livros emprestados. Entra para devolver um e já sai com outro. Seria útil saber o que liam os poetas inconfidentes naquele momento, com que obras alimentavam os espíritos, enquanto conversavam sobre a conjuração.
Não sejamos severos com o depoimento de Alvarenga Peixoto. Fora o Alferes, o objetivo de todos os depoentes foi escapar com vida do malogro da conjuração. Já no caminho de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, o poeta sofreu. Informa M. Rodrigues Lapa, de maneira desnecessariamente irônica, ter sido ele maltratado pela escolta: “os ferros, magoando as carnes mimosas, fizeram-lhe feridas no corpo”. Cecília Meireles, em “Romanceiro da Inconfidência”, é tolerante. Seus versos mostram a decadência – “tão tristemente covarde que só causava desprezo” – mas descrevem uma figura humana merecedora de comiseração: “apagada a glória antiga, rolava em chãos de masmorra sua sorte perseguida”. Domício Proença Filho, em seu livro de 1989, “Oratório dos inconfidentes”, é igualmente amistoso em relação a ele. Cada verso do poema em sua homenagem se inicia com a palavra “Irmão”.
Recentemente, decidi ir até a Fortaleza do Penedo. Hoje, ela está cercada pelo terminal de cargas do porto de Luanda. Falar em sua “restauração” é eufemismo. Sobraram apenas as fachadas do forte, a carapaça. É uma reconstrução o que está em curso. Lá voltarei quando os andaimes tiverem sido retirados, quando for possível entrar no prédio reconstituído e imaginar a dor intolerável sentida, entre aquelas paredes, pelos cativos à espera da partida para o Brasil, pelos inconfidentes enviados do Brasil e pelos presos políticos da longa era colonial.
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O embaixador Ary Quintella escreve quinzenalmente para o Estado de Minas. Seu livro “Geografia do tempo” foi este ano finalista do Prêmio Jabuti