Vivemos repetindo que “não me lembro de nada”, como se nossa memória tivesse se enfraquecido de um dia para o outro. Mas, na maioria das vezes, o problema não está no ato de lembrar. Está no ato de registrar. Antes de qualquer memória se formar, ela precisa atravessar uma porta fundamental: a atenção. E é justamente essa porta que tem permanecido entreaberta ou congestionada no nosso tempo. 


Hoje, somos bombardeados por um volume de estímulos sem precedentes. Notificações que piscam a cada minuto, mensagens que chegam sem intervalo, múltiplas abas que disputam o olhar, mudanças rápidas de assunto, interrupções constantes, pequenas decisões que se acumulam até formar um bloco invisível de cansaço. A neurociência e a psicologia cognitiva mostram que a atenção humana é limitada; quando ela é fragmentada repetidamente ao longo do dia, o cérebro perde a capacidade de registrar com profundidade aquilo que vivemos.


Não é esquecimento. É ausência de presença. E talvez a pergunta mais honesta seja: quando foi a última vez que você esteve verdadeiramente presente no que estava acontecendo?


O resultado é um dia vivido pela metade. Conversas que não fixam, compromissos que passam despercebidos, tarefas que evaporam da mente. A sensação de vazio cognitivo não nasce da incapacidade de lembrar, mas do fato de que nunca estivemos inteiros na experiência. Cada interrupção, por menor que seja, rouba um pedaço da nossa capacidade de acompanhar o que estamos fazendo. É como tentar assistir a um filme enquanto alguém avança a cena sem aviso; você vê, mas não absorve. Vale se perguntar: quais cenas da sua vida têm passado rápido demais para se tornarem lembrança?


Há ainda um fator silencioso: o excesso de decisões que fazemos sem notar. Pesquisas indicam que um adulto toma em média 30 mil microdecisões ao longo do dia, como escolher a roupa para trabalhar, decidir o trajeto, ajustar o tom das mensagens enviadas, pensar no almoço, organizar a agenda, responder e-mails que se multiplicam, ajustar reuniões, encaminhar tarefas, revisar entregas, definir o treino, escolher a hora de dormir. Cada decisão parece pequena quando isolada; juntas, porém, moldam um esgotamento quase imperceptível. Entramos em uma fadiga silenciosa que limita nossa atenção até nas pequenas coisas. Aí, entra outra questão: o que, no seu dia, tem drenado energia sem que você perceba?


Como recuperar essa presença perdida? Talvez o primeiro passo seja reconhecer que não se trata de incapacidade e sim de excesso de estímulos. Diminuir a velocidade, fazer uma coisa por vez, respirar antes de responder, reduzir notificações, encerrar pequenos ciclos. Tudo isso devolve ao cérebro a chance de registrar o momento.


A presença começa no simples e pode ser cultivada em práticas breves, acessíveis e restauradoras:


• Pausar por 10 segundos
Pergunte em silêncio como está o meu corpo agora, qual é o pensamento dominante desse instante e se há algo que possa liberar. Mesmo curta, essa pausa reorganiza a mente por dentro.


• Perceber o corpo enquanto lava as mãos
Sinta a temperatura da água, a textura do sabonete e o movimento repetido dos dedos.


• Observar um único objeto
Escolha algo ao seu redor e note a forma, a cor, a textura, as sombras e os detalhes. Esse gesto suave ensina a mente a ver e não apenas olhar.


• Sentir o sabor do momento
Ao beber café ou chá, leve a xícara com calma, sinta o calor, o aroma que se espalha e o sabor do primeiro gole. Transforme esse hábito automático em presença corporal.


• Encerrar ciclos
Antes de iniciar uma nova tarefa, conclua a anterior. Salve o arquivo, feche a aba, respire três vezes com intenção. O cérebro agradece quando encontra começo, meio e fim.


Talvez valha perguntar: em quais momentos do seu dia você esteve realmente presente? O que você estava fazendo quando se percebeu inteiro? E o que acontece quando vive no modo automático, saltando de estímulo em estímulo, sem dar tempo para a vida virar registro?


Se não há vivência, não há memória. Porque a vida só se torna lembrança quando se transforma em presença.

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