Jornal Estado de Minas

Uma vida não tem preço

Quando cheguei a Camargos, há 30 anos, não tinha nada lá na terra. Só uma casa velha. Agora, tem construção, curral, pocilga, quartos de guardar ferramenta. Está tudo atolado, mas está lá ainda. Qualquer ferramenta que você procurar, eu tenho. De roça, de mexer com carro. Tudo lá. Foi muito calo na mão, é claro.

Todo dia, eu acordava às cinco horas da manhã.

Eu tinha um carro em que fazia o transporte escolar. Pegava os meninos lá em Bento antes das seis horas e levava até Santa Rita. Em Santa Rita, buscava um menino em uma fazenda e deixava na escola. Voltava pra casa, tirava leite, arrumava o que tinha que arrumar, voltava a Santa Rita e fazia a mesma coisa. Pegava os meninos na escola, levava na fazenda e trazia os professores pra Bento Rodrigues.

Eu vivia da fazenda. Fazia uma base de quinze queijos por dia. O soro eu aproveitava para tratar de porco.
Vendia frango vivo ou abatido. Vendia ovos. Minha mulher também fazia uns doces para ajudar na renda. O dinheiro era razoável. Dava para viver. Girava em torno de R$ 6 mil ou mais. É razoável, mas tinha a despesa com os bichos, tinha muito cachorro e gato, pois vendia filhote de cachorro também, uns (da raça) pincher.

Atualmente, tinha umas vacas leiteiras, galinha, porcos, cachorro, gato e esses bichos assim. Eram 40 vacas e 200 galinhas, mas sobraram só 125, que estão aqui nesse galpão.
O resto morreu tudo. Meu terreno tinha 110 hectares. A água que tem lá é de maior valor. Uma água clarinha, boa demais da conta, vem do alto da serra. Chega muita água, umas três polegadas de água. A água que vai na pocilga fica dia e noite correndo. Vai água na casa, pra todo lado. O Rio Tesoureiro, um córrego, aquele da cachoeira, passa na frente da propriedade.

Eu faço divisa com a Samarco. Uma empresa dela que chama Agrovertente. Procuraram-me várias vezes para comprar a propriedade, mas não quis vender.
Não tenho ideia de quanto perdi. Uma vida não tem preço. Um sonho. Uma propriedade. Eu não quis vender. Eles pagavam bem na época, R$ 15 mil por hectare, mas eu nem pensava na possibilidade. Se eu arrependi? Se eu sonhasse com essa situação... Mas na verdade eu não queria vender.

A parte produtiva da fazenda acabou. A casa e as benfeitorias acabaram. Desde que eu vim para cá há 30 anos fiquei arrumando a fazenda do meu jeito.
Estava quase pronto. Faltava pouco. Eu gostava de ver que estava quase do jeito que eu queria. Estava pensando em aumentar a produção de leite. Eu tinha até uma máquina para fazer um serviço atrás do curral. Ia fazer outro estábulo lá e arrumar uma ordenha para aumentar a produção do leite. A minha ordenha era manual e eu fazia queijo. Lá não tem linha de leite. Tem até o projeto de uma cooperativa de leite aqui em Mariana, mas não saiu do papel. Vendia queijo em Bento Rodrigues, Santa Rita e Antônio Pereira. Meu queijo era média cura. Não fazia frescal. Fazia um queijo minas comum. Vendia bem, graças a Deus. Também vendia porco. Abatido ou vivo. Vendia leitão.

Como é morar no hotel? Eu estou enrolado, né? Como ficar tranquilo? Acabou com a minha vida. Mandaram eu alugar um sítio, uma propriedade rural, mas está difícil achar aqui perto. Estou olhando na proximidade de Mariana, mas na região aqui não tem. É quase tudo da Samarco. Estou preocupado. Todo dia não sei aonde vou, o que vou fazer e tal. Eu não estou dormindo. Andei tomando uns remédios, uns calmantes, nem sei o que é. Para tranquilizar e tudo, mas não está adiantando. Eu durmo três horas no máximo.

O que foi o dia cinco de novembro? Acabou com minha vida. De manhã eu já tinha feito o que tinha que fazer. À tarde eu atrasei para ir para Bento Rodrigues. Parece que foi o destino. Um rapazinho que trabalhava comigo estava cortando uma cana em Bento. Aí busquei o menino na fazenda e quando estava chegando em Camargos fiquei sabendo da notícia. Cheguei no alto estava tudo na lama. Eu acho que mesmo com tudo que aconteceu foi pouco. Faleceram quatro pessoas do Bento. Mas eu acho que Deus ainda foi bom, pois se fosse à noite não ficava ninguém. .