Jornal Estado de Minas

As pessoas estavam estarrecidas

“Renata, rompeu uma barragem e não sei quando volto”, escrevi em uma mensagem para minha mulher. Deus não escolhe os preparados. Ele prepara os escolhidos. “Farah, vamos ver se você está preparado”, pensei. Um amigo da minha turma falou por mensagem: “Tem um distrito, Bento Rodrigues, que está totalmente isolado e eu não consigo ter acesso”.

Mandei uma mensagem para o grupo que trabalha no pelotão de busca e salvamento: “Quem tá em condição de deslocar?”. O pessoal começou a responder: “Eu, eu, eu”. Em menos de 20 minutos, todos os meus militares estavam no batalhão. Como (Mariana) era distante, deslocamos uma equipe de helicóptero e uma terrestre.

Fui na primeira. A gente sobrevoou e viu... a lama.

- Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
“Farah, vamos descer ali?”, perguntou o comandante da aeronave. “Major (da polícia), não vamos descer lá, não. Vamos seguir o rio, a lama. Não sei o que tem aí para baixo. Não sei se tem outra barragem”, respondi.
Eu imaginava que Bento tinha acabado. “O que vou fazer lá? Está tudo coberto pela lama, deixa eu tentar salvar outras pessoas.”

Tentamos alcançar a lama, mas ela ia rápido. Parecia filme. Eucaliptos eram arrancados. Subia um pó. Vimos uma cidade ao lado. Não sabíamos que era Paracatu. As pessoas começaram a se aglomerar perto do campo de futebol.
Acenavam. Falei com o comandante da aeronave: “Major, a gente tem que descer e avisar esse pessoal”. Ele viu que ia ser um desastre e pousou. Era tanta gente que ele desligou a aeronave e foi com a gente tirar todo mundo da cidade.

- Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
O pessoal passou ao desespero. Todo mundo chorando, sem saber o que fazer. Queriam entrar em casa e pegar as coisas. “Não pega nada. Pega documento e vai embora.” As pessoas estavam estarrecidas, não saíam do lugar. A gente começou a levá-las para o alto do cemitério. Apitávamos, avisávamos, arrombávamos as portas das casas para ver se não tinha ninguém.
O copiloto do helicóptero viu aquela poeira chegando. “Farah, vai pegar a gente.” Não é questão fácil de lidar. Se eu parasse para pensar em todos os riscos que existem, estaria em casa. Se a gente não fizer, quem vai fazer? Vimos o restante das pessoas subirem.

Eu e mais oito militares chegamos a Bento. Nunca fui em uma guerra, mas era aquilo. Era noite e não tinha acesso. Ninguém chegava a Bento. Tive que parar um pouco e pensar o que faria. Como vou arrumar alimentação e água para mais de 500 pessoas? Falei com o sargento que trabalha comigo: “Ferreira, abre uma estrada para o outro lado”. “Tenente, não tem ninguém para operar a máquina.” Eu disse: “Aprende.
Faz funcionar essa máquina. Precisamos abrir essa estrada e tirar essas pessoas daqui. Eu confio em você”. Deixei mais dois militares com ele.

- Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Disse ao tenente Tiago (que estava do outro lado de Bento): “Tiago, tem mais de 500 pessoas aqui. A gente precisa tirar esse pessoal. Estou abrindo um caminho. Arruma uma máquina do outro lado e faz o mesmo.” Nesse meio tempo, ele contou que o engenheiro dizia que corria o risco de outra barragem romper. Respondi: “Tiago, eu não vou sair daqui.” Aí eu ouvi ele falar no rádio: “O tenente Farah não vai sair e eu também não vou. Nós vamos tirar todo mundo.”

Em Bento, uma senhora falou: “Eu não consegui avisar o pessoal de Paracatu de Baixo”. Aquilo começou a me incomodar. Será que a gente conseguiu tirar todo mundo de lá? No dia seguinte, a primeira aeronave que chegou lá pousou. “Tem alguém ferido?”, perguntei. “Não. Está todo mundo no cemitério. Veio um avião e mandou todo mundo subir.” Pensei: “Agora eu posso trabalhar tranquilo.”


Em 6 de novembro, entramos com todo mundo na lama. Fomos de casa em casa, atolados até o pescoço, com a esperança de encontrar alguém. Se a gente ficasse em pé, a lama soterraria totalmente. Tínhamos bastões. Não era para saber onde pisar. Era para saber até onde ia afundar. O raciocínio nosso era isso. A gente nadava na lama, literalmente. No primeiro dia, tiramos três pessoas vivas. Depois, só conseguimos recuperar corpos..