Jornal Estado de Minas

Pamela Rayane

A última coisa que tive da minha filha foi um beijo, um abraço e nada mais


É menino. Eu e o Tinho estamos querendo colocar o nome de Moisés por causa da novela que passou. É uma história muito bonita. A Emanuelly gostava de ver. O Nícolas também gosta muito desse nome. Se fosse menina, ia ser Vitória Emanuelly. Ia inverter o nome. Ela chamava Emanuelly Vitória.



Na noite em que Moisés abriu o Mar Vermelho, na novela da Record (10 de novembro), eu não assisti, é claro! Não tinha cabeça. De tarde, quando fui buscar umas roupas no ginásio, porque não tinha nada para vestir, um psicólogo me procurou. Ele contou que haviam encontrado o corpo da Emanuelly.

Tudo ficou pequeno. Eu pedi a Deus para me levar junto com a minha filha. Eu não estava aguentando mais. É uma dor que só quem passou e perdeu consegue entender. Antes, só de falarem dela eu não podia nem conversar. Chorava. Não podia ver nada dela que chorava. Hoje consigo ver uma foto e falar dela.
A Emanuelly estava ensaiando um teatrinho para formatura do terceiro período. Eu guardava o dinheiro para pagar a roupinha. Era um vestido rodadinho de bolinha. Com anteninha. Tudo bonitinho. Não deu tempo dela me contar se já sabia o que teria que dizer, mas creio que ela decorou as falas, porque era uma menina muito esperta. Da roupinha ela contou. Chegou a medir no corpo para fazer.



Quando foi na quinta-feira (dia do rompimento da barragem), nós duas acordamos cedo demais. Não sei se marquei o despertador errado, mas o celular tocou fora de hora. Ficamos um tempão no sofá batendo papo. Ela contando coisas de escola. Falava da formatura e da roupa da dona Baratinha, que seria o tema do teatro.

Na quinta-feira de manhã, fiquei com meu esposo e o Nícolas. Fiz o almoço e busquei a Emanuelly na escola. Nesse dia, ela não foi para a casa de ninguém. Nem para a casa da Isadora. A semana toda não tinha ido lá. Buscava a Emanuelly e meio-dia e meio eu ia para escola. Ficava até cinco da tarde. Quando o pai dela estava em casa, as crianças ficavam com o pai. Quando não estava, eu os levava para minha sogra ou minha mãe. Na quinta-feira, almoçamos todos juntos. Eu, Emanuelly, Nícolas e meu esposo. Nesse dia, o pai dela estava com ritmo meio estranho. Ainda falei com ele: “Nó, Tinho, não fica assim não”. E ele deu uma melhorada.

Casamos no ano passado, mas comecei a relacionar com meu esposo (Wesley Izabel, o Tinho, de 24 anos) quando eu tinha 11 anos. Estamos juntos até hoje. Esse ano fez um ano que estamos juntos, quer dizer, casados. Mas juntos mesmo tem 10 anos. Tive a Emanuelly aos 15 anos e fiquei com minha mãe até ela completar os quatro aninhos dela. Aí depois fizeram a minha casa. Já tinha o Nícolas e fui morar com meu esposo. Minha casa era aproximada do rio. Na travessa Cônego Veloso, número 98. A minha rua era sem saída. Tinha um pedacinho para lá e aí retornava de novo. E em baixo passava o rio.





Meu marido trabalhava fichado em serviços gerais. Ajudante de pedreiro, roçar... Esses trem tudo. Mas esse ano ficou muito ruim de emprego e ultimamente ele estava trabalhando lá perto de Santa Bárbara, de ajudante de pedreiro. Eu cuidava das crianças, mas sempre precisei da ajuda da minha mãe e da sogra, já que também ia para escola.

Vou formar o nono ano. Tive que parar seis anos por causa dos meninos. Vou formar e depois pretendo fazer uma prova do ensino médio. O pessoal fala: 'Pamela, você não está muito velha para estudar?". Eu digo que não. Eu sempre quis ter uma profissão melhor para cuidar dos meus filhos. Meu sonho antes era estudar para ser policial ou agente penitenciária. Mas hoje eu não quero isso mais não.

O salário do Tinho dava, mas aquela vida ali de sempre. Ele ganhava um salário mínimo de 700 e poucos reais. Conseguíamos viver com pouco em Bento. Lá era um lugar onde as coisas eram baratas. Vínhamos em Mariana e buscávamos somente o necessário.



A gente reclamava. Não vou falar com você que ninguém reclamava, porque reclamávamos. Hoje a gente percebe que era feliz e não sabia. Um vizinho reclamava do outro. Falava que era ruim demais, um lugar pequeno, isso e aquilo. Que queria sair do Bento e ir para Mariana, já que é melhor para trabalhar. Acabou que estávamos errados. Hoje a a gente está aqui e queria estar lá.

Nessa revolta toda que fiquei depois da morte da Emanuelly eu pensava que queria ficar sozinha. Não ficar perto de ninguém para não ter lembranças. Mas agora as pessoas me falam que se eu ficar sozinha vai ser pior. Vou continuar morando junto com todo mundo, porque lá (no que pode ser a Nova Bento Rodrigues) vão estar minha mãe, a mãe do meu esposo. Eu creio também que a Samarco não vai deixar fazer casa particular fora da vila. Eles vão querer devolver o que eles tiraram da gente, mas o mais importante eles não vão conseguir devolver, que é minha filha.

Quando eu lembro do jeitinho dela eu rio. A Emanuelly tinha um lado muito sentimental, e isso ela puxou de mim. Se ela visse alguém triste – às vezes a gente nem estava – ela chegava perto e perguntava: “Ô mãe, você está passando mal? Você está bem?”. Às vezes eu brigava com o esposo e despistava dizendo que estava bem. Mas ela sabia que eu não estava.



A Emanuelly era muito brincalhona. Eu falava com ela é isso, isso e isso, bem brava, mas ela tinha o jeitinho de conversar dela e falava: “Ah, para mãe!”. Falava que estava falando sério e ela olhava para minha cara e eu não aguentava: começava a rir. Ela era muito engraçada. Ela fazia de tudo para chamar minha atenção. E estava gostando muito de ganhar outro irmãozinho. Ela queria uma menina e o Nícolas queria um menino. Os dois ficavam discutindo.

No dia da tragédia, estava na escola e escutamos um barulho longe. As meninas acharam que haviam colocado fogo no mato de novo. De repente, a diretora e as outras funcionárias gritaram: “Corre que a barragem rompeu”. O meu impulso era ir nos meus filhos e no meu esposo. Mas a direção (a diretora da escola) não deixou passar. A água já vinha. Alguém me disse que eles (os filhos e o marido) já tinham subido. Eu subi. Vi minha mãe, todo mundo do Bento e fui procurar por eles. Cadê? Não achei ninguém. Fiquei realmente sozinha e desesperada. Acharam o pai deles na lama. O Nícolas perto de um carro, segurando no vidro um pouco para frente. A Emanuelly não, porque ela tomou um rumo diferente.

Depois disso eu falei que não ia estudar mais, porque se não estivesse na escola eu estaria junto com eles. Podia ser pela última vez, mas estaria. Antes de sair para ir para aula eu fazia igual de manhã, quando a Emanuelly ia estudar. Dava um beijinho no rosto deles e no pai. A última coisa que tive da minha filha foi um beijo e um abraço. E mais nada.