Jornal Estado de Minas

Marcelo José Felício

Na hora, eu perguntava: Vocês viram minha mãe?

Seu eu estivesse lá, teria ouvido as pessoas gritarem que a barragem estourou. Teria pego minha moto, subido até a casa da minha irmã. Perguntaria: ''Mãe tá aí?'' ''Tá não. Desceu pra casa dela'', minha irmã diria. Teria descido vazado na moto até encontrá-la. A colocaria sobre o tanque, porque ela tinha medo de montar em moto, e sairíamos. Salvaria meu cachorro e soltaria meus passarinhos. Teria salvado minha mãe, mas Deus não me deu esse dom.

Não me disse: ''Falta ao serviço hoje, que você vai salvar sua mãe''. Falei com minha esposa que queria ter falhado (com o serviço). Se estivesse lá, seria outra história. Minha mãe ficava durante a noite na casa da minha irmã, porque tinha medo de dormir em casa sozinha. Em tempo de chuva, começava a trovejar, ela vazava. ''Não vou ficar sozinha, não.'' Ficava na casa da Marli à noite e durante o dia na casa dela. Cuidava das criações, galinha, vários cachorros. Dava uma limpada na casa e almoçava lá.
Cinco e pouco, seis horas, ela ia para a casa da minha irmã para dormir. Eu falei com ela: ''Vou acabar de mexer com minha casa e vou levar a senhora para morar lá.'' Estava construindo três quartos, uma copa, uma sala, dois banheiros e uma área de serviço. - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press ''O pessoal tá falando que você vai casar sem casa'', ela me disse. ''Casa no ano que vem, que você estará com sua casa pronta e eu vou poder morar com vocês.'' ''Mãe, eu tô desempregado, não sei quando vou arrumar serviço. Tenho fé em Deus que vai dar certo, vou casar neste ano mesmo.''No dia 19 de setembro, ela entrou comigo na Igreja de São Bento. Arrumou-se toda. Todo mundo ficou elogiando o casamento. Casamento de roça é bom assim: faz bastante comida, bastante cerveja e todo mundo é convidado. Arroz, farofa, pernil assado, salpicão.
Ficou muito bom, o casamento. Parentes de Mariana, primos e primas, falaram que nunca foram a festa de roça boa assim. Minha mãe estava com saia verde e blusa verde, sandália, porque não gostava de calçado fechado. Arrumou o cabelo e a Valéria (amiga da família) fez a maquiagem e pintou as unhas. Dias antes, eu brincava com ela: ''Não vai atrasar, não, mãe''. No caminho para o altar, ela me disse: ''Quero que você seja muito feliz, você é um filho maravilhoso, a moça com que você está casando é muito gente boa. Deus abençoe para que sejam felizes. Você a respeite e ela te respeite'', disse. E me deu um abraço forte. No dia em que a tragédia aconteceu, eu saí do Bento para trabalhar. A casa da minha mãe era a uns 100 metros do córrego. Passei de moto e olhava lá de cima.
Um colega que trabalhava comigo na Integral (empreiteira que prestava serviços para a Samarco) me pediu carona e falei com ele: ''Quando chegar em casa, vou guardar minha moto, pegar a bicicleta e ir à casa da minha mãe.'' Quando aconteceu a tragédia, eu fiquei doido, pensando na minha mãe. Esse horário ela tomava banho. Era costume dela tomar banho entre três e meia e quatro horas. - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press Saio 5h40 de casa, chego à Samarco às 6h10, pego ônibus e tomo café. Oito horas já estou no campo trabalhando. Uma hora almocei e voltei para o campo. Tirei um cochilo, estava cansado. Eu estava no lugar em que a barragem rompeu, fazendo levantamento de topografia. Estava abaixo do dique. ''Marcelo, guarda o aparelho, que a caminhonete tá chegando. Põe na caixa que a caminhonete tá chegando lá na estrada'', disse um colega.
Juntei o material e fui para lá. A sinaleira da via falou: ''Você é de onde?'' ''Sou de Bento Rodrigues'', respondi. ''Menino, eu fui no Bento e gostei demais. Só uma coisa: essa barragem não faz medo em vocês não?'' Eu disse: ''Faz, mas está nas mãos de Deus. Só ele para segurar, para salvar todos nós. Risco, estamos correndo de todo jeito''. ''Essa barragem é grande. Se estourar mata todo mundo no Bento'', ela falou. Olhei para o céu e disse: ''Deus é pai. Só Deus sabe dessas coisas, a hora que a gente vai morrer''. A caminhonete chegou, me despedi dela e fui embora. Fui pegar meu contracheque no escritório. As horas extras foram boas neste mês. Aí o Rafael falou: ''Marcelo, a barragem rompeu''. ''Que rompeu, sô. Saí de lá agora mesmo'', retruquei. ''Rompeu sim. Escuta no rádio.'' Cheguei à Vila Samarco, vi um poeirão no sentido Bento. Falei: ''Essa barragem tá chegando lá''. Na estrada, comecei a chorar, entrei em estado de choque e não consegui pilotar. Passei a moto para o meu colega. Encontrei com Onézio e o Antônio Augusto. Dois caras de moto falaram: ''Acabou, Marcelo. Todo mundo morreu lá no Bento''. ''Deixa de ser bobo, não morreram não''. ''Morreu. Eu fui lá e a lama invadiu tudo. Só na igreja lá de cima que tem casa em pé. Vamos voltar, se você for lá você morre também'', me falaram. Fui pela Vila Samarco e por Santa Rita Durão. Não estava acreditando no que via, não. Na hora, eu perguntava: ''Vocês viram a minha mãe?'' ''Sua mãe desceu.'' Fiquei com aquela coisa na cabeça. Como ela ia correr se ela tinha 64 anos e não dava conta? Será que alguém a ajudou a escapar? E pedia a Deus: ''Faça com que minha mãe esteja com o pessoal no lugar mais alto''. Perguntei a um senhor sobre ela. ''Sua irmã tá bem, seu cunhado está bem, mas sua mãe desceu para casa naquele horário. Os bombeiros amanhã vão fazer as buscas.'' Não consegui dormir naquela noite. Encontrei minha irmã. ''Marli, e nossa mãe?''. Ela disse: ''A nossa mãe está desaparecida. A Marcelina (senhora que estava com Maria das Graças na hora do rompimento) sobreviveu e falou que nossa mãe estava no terreiro com a lama batendo no joelho dela. Veio a onda e jogou para o meio da lama. Aí ela sumiu''. Até hoje não temos notícia. Uns falam que acharam corpo de mulher no Rio Doce, mas não sei se é verdade. Ela era religiosa, católica. Ia à missa, rezava em casa. Era muito alegre e gostava de conversar com pessoas com quem tinha amizade. Mas, se a magoassem, ela não conversava mais. Eu morei com ela até 19 de setembro, o dia do meu casamento. Quando criança, falava para eu ser um cara trabalhador, uma pessoa de respeito. Ser honesto com as pessoas, respeitar, sejam mais velhos ou mais novos. Se eu casasse o ano que vem, ela não entraria na igreja como ela entrou. Foi o pior dia da minha vida. Uma tragédia que não vou esquecer nunca. Para mim, foi como o 11 de setembro, quando os terroristas derrubaram aqueles prédios nos Estados Unidos..