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Estado de Minas ARQUEOLOGIA

Antigas sepulturas em Lagoa Santa revelam rituais dos primeiros brasileiros

A análise de antigas sepulturas encontradas em Minas Gerais fornece pistas de como evoluiu a cultura dos grupos pré-históricos que viveram no território nacional


postado em 26/09/2014 09:29 / atualizado em 26/09/2014 09:30

Rodrigo Elias de Oliveira escavou um crânio data do Holoceno, há 10 mil anos, que pertenceu a uma pessoa que viveu na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais (foto: (André Strauss/Divulgação))
Rodrigo Elias de Oliveira escavou um crânio data do Holoceno, há 10 mil anos, que pertenceu a uma pessoa que viveu na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais (foto: (André Strauss/Divulgação))
 

Primeiro, o corpo era mutilado, tendo pele, músculos e dentes retirados. Os ossos, desarticulados e queimados, recebiam um tratamento com pigmentos avermelhados, e eram eles que iam para a pequena cova, onde dividiam espaço com esqueletos de outros membros do grupo. Era dessa forma que os povos que viveram há cerca de 10 mil anos onde hoje fica a cidade mineira de Lagoa Santa, nas proximidades de Belo Horizonte, enterravam seus mortos. O ritual, que pode parecer bárbaro aos olhos do presente, evidencia, na realidade, o profundo respeito que esses antigos humanos tinham pelos que faleciam. A complexa liturgia é um forte indício de que a cultura dos “primeiros brasileiros” era muito mais rica do que se imaginava até pouco tempo atrás.

Quando se fala em pré-história da América do Sul, a referência maior vem dos Andes. A fatia mais robusta dos estudos sobre o tema investiga os padrões migratórios dos grupos que viveram a oeste das montanhas andinas. Entretanto, para os pesquisadores André Strauss e Rodrigo Elias de Oliveira, que se debruçam sobre o material encontrado na região de Minas Gerais, os costumes desses povos são tão interessantes quanto suas origens.

“A grande vantagem desse trabalho é que nós mudamos um pouco o foco dos estudos de Lagoa Santa. Por muitos anos, os pesquisadores da região estavam preocupados com o processo migratório do ser humano para a América. Outro tema recorrente era se eles tinham convivido ou não com a megafauna da época. Mas não estamos tão preocupados com esses temas”, diz Oliveira, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).


Na arqueologia, os rituais fúnebres são um dos mais valiosos registros do comportamento simbólico. Os esqueletos, porém, são escassos. Felizmente, o portal para o passado foi aberto no século 19, quando foram iniciadas as escavações no local. Uma gruta em especial, a Lapa do Santo, guardou durante os últimos 10 mil anos, período chamado de Holoceno, informações importantes sobre a cosmologia dos caçadores-coletores que ocuparam a região.

Simbolismo no corpo

Lá, Strauss e Oliveira, com uma equipe multidisciplinar de especialistas, encontraram três padrões funerários que, ao que tudo indica, evoluíram ao longo do tempo. “É justamente essa sucessão que baseia toda nossa argumentação de uma história na pré-história. Encontramos uma forte ênfase na manipulação do corpo/cadáver. Em muitos casos, a elaboração dos rituais funerários passa por sofisticados acompanhamentos ou pela construção de tumbas elaboradas. Naturalmente, esses elementos compõem todo um simbolismo fúnebre que reflete a visão de mundo desses grupos”, destaca Strauss, idealizador do projeto, financiado pelo Instituto Max Planck, na Alemanha, onde ele faz doutorado.

O cientista explica que nunca foram encontradas evidências sobre o comportamento simbólico dos habitantes de Lagoa Santa. “Nunca foram encontradas oferendas ou tumbas sofisticadas. Por isso, sempre se pensou que os enterros desses grupos de 9 mil anos atrás eram simples e sem grande elaboração simbólica. O que nosso trabalho mostra é que, na ausência de uma arquitetura sofisticada ou de ricos acompanhamentos funerários, a elaboração dos rituais mortuários passava pelo uso do próprio corpo do falecido com símbolo para expressar essa cosmovisão”, diz Strauss.

Na reconstrução do cotidiano de populações do passado, os pesquisadores estudaram 26 sepultamentos humanos. O primeiro padrão funerário encontrado pelos cientistas (veja arte) consistia em reduzir o tamanho do corpo com mutilação. Ainda não se sabe o porquê, mas é possível que esses rituais seguissem diretrizes sociais bem estabelecidas e executadas por indivíduos especializados no ofício. Em alguns casos, tíbias e perônios — ossos da perna que ficam muito próximos um do outro — foram removidos e triturados. As partes moles da perna, entretanto, foram preservadas. Em outro caso, há um indivíduo que teve a cabeça decapitada com as primeiras seis vértebras cervicais articuladas em posição anatômica. Essa pessoa, aliás, é a mais antiga a ser decapitada em território americano de que se tem conhecimento hoje.

Em outro túmulo, os pesquisadores encontraram um crânio que foi utilizado como um recipiente funerário, preenchido com ossos queimados e picados. Ele foi exposto ao fogo quando ainda tinha pele. Naquela época, não era raro que os esqueletos fossem revestidos com argila vermelha. Restos mortais de crianças também foram encontrados, e os esqueletos mostram que, assim como os adultos, elas também foram desmembradas. O crânio de um pequeno, por exemplo, foi encontrado posicionado na pelve de um adulto.

Identidade

Outra curiosidade sobre os processos é que, provavelmente, havia o cuidado para que os mortos não fossem devorados por animais, como roedores. Isso significa que os corpos eram limpos e, portanto, não eram enterrados imediatamente. A organização deliberada dos ossos, característica já de um segundo padrão funerário, sugere uma preocupação de melhorar a estética cerimonial.

“O interessante é que fomos capazes de mostrar que as mesmas prescrições fúnebres observadas na Lapa do Santo também eram seguidas em outras cavernas de Lagoa Santa, mas não em localidades mais afastadas, como a Serra do Cipó ou a Serra da Capivara. Isso mostra que, há 9 mil anos, existiam diversos grupos bem estabelecidos na região que compartilhavam da mesma identidade cultural”, conclui Strauss.

Segundo Ana Catarina Peregrino Torres Ramos, professora do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a organização e o cuidado desses rituais são fortes indicativos de uma grande consideração e respeito pelos mortos. “Isso foi visto em um sítio arqueológico no Rio Grande do Norte, em Carnaúba dos Dantas. Os ossos das crianças, por exemplo, estavam pintados de vermelho, o que é uma ritualização. Outro esqueleto foi encontrado com uma flauta feita de osso, um claro indício de que existia sim um enxoval funerário”, acrescenta.

 


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