Jornal Estado de Minas

No Horto

Há 70 anos, BH via uma das maiores zebras da história das Copas

Depois do jogo, torcedores mineiros carregaram Gaetjens, o herói da partida (foto: Jose Inácio/O Cruzeiro/EM/D.A Press)

Os torcedores do Brasil choraram ao longo do tempo e apontaram culpados para a surpreendente derrota para o Uruguai por 2 a 1, no Maracanã, pela Copa do Mundo de 1950, a primeira realizada no país. Contudo, a decepção verde-amarela não foi a única daquela competição. Antes, o caldeirão do Independência havia testemunhado uma das maiores zebras dos Mundiais, quando a poderosa Seleção Inglesa foi derrotada pelos Estados Unidos por 1 a 0, no episódio mundialmente conhecido como “Milagre de Belo Horizonte”, que completa hoje 70 anos. Ainda que os anos tenham se passado, a partida em si desperta curiosidade e é motivo de deboche para os inventores do futebol, que teve em BH seu resultado mais vergonhoso.




O jogo virou até filme, Duelo de Campeões, de 2006, que reconstruiu o gol de Joe Gaetjens, um haitiano que foi morar em Nova York nos anos 1940. O lance em si não foi captado pelas imagens de TV, com poucos recursos na época. Ainda vivendo o amadorismo, a Seleção Norte-americana chegou ao Brasil com um time composto por vários trabalhadores e estudantes para encarar uma das forças da Europa, que, por desentendimentos com a Fifa, havia boicotado as edições anteriores da competição.
Na equipe, tinha todo tipo de trabalhador. O goleiro Borghi era estudante de medicina, o zagueiro Coombes era soldado nas forças armadas, enquanto o atacante Nicholas Diorio trabalhava como operário de fábrica. Gaetjens, que se tornou famoso, foi cozinheiro de um restaurante e depois se tornou ativista político, até ser assassinado em 1964 ao retornar ao Haiti, que vivia ditadura. Já o ingleses contavam com atletas renomados na época, como os zagueiros Billy Wright e Alf Ramsey (que seria campeão mundial como treinador em 1966) e os atacantes Thomas Finney, Jack Milburn e Mortensen. O craque do time, porém, era Stanley Matthews, considerado o melhor do mundo no período.

Das três partidas realizadas no Independência na Copa de 50, Estados Unidos e Inglaterra teve o maior público: 10.181 pagantes (foto: Arquivo EM)

O borderô oficial apontou um público de 10.151 pessoas no Horto. O gol de Gaetjens, de cabeça, ocorreu aos 38min do primeiro tempo. Em todo o jogo, porém, o domínio inglês foi total, com sessões de chutes e bolas na trave de Borghi. “A disparidade técnica era forte entre as seleções, mas os mineiros apoiaram os EUA. Os ingleses se recusaram a ficar hospedados em Belo Horizonte e preferiram Nova Lima, sem contato com a imprensa. Isso criou um clima de animosidade com o público. O time norte-americano foi pouco retratado na mídia. Eles consideravam o futebol como uma oportunidade de educação física e moral”, explica Marcus Lage, doutor em história pela UFMG.




Além do confronto entre ingleses e norte-americanos, o Independência, construído exatamente para o Mundial, recebeu a goleada uruguaia sobre a Bolívia por 8 a 0 e a vitória da Iugoslávia sobre a Suíça por 3 a 0 (elas receberam cerca de 5 mil torcedores, cada). As partidas não despertariam tanto a curiosidade do público mineiro como no duelo entre ingleses e norte-americanos.

Afonso Celso Raso, que foi ao Independência ver o jogo: "Tinha um jogador norte-americano que usava luvas para lembrar que não podia colocar a mão na bola" (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

Segundo Marcus, o surpreendente placar de Inglaterra x EUA premiou um Mundial esvaziado na capital mineira: “A prefeitura havia negociado com a CBD a realização de partidas de destaque, como Inglaterra e Espanha, que daria repercussão. Mas, quando houve o sorteio, a própria CBD não autorizou o jogo, pelo fato de o Independência ser pequeno. Uruguai e Bolívia, por exemplo, foi um jogo extremamente criticado pela opinião pública. Inglaterra x EUA foi melhor pela expectativa e pelo resultado surpreendente”.

Testemunha ocular

Um dos expectadores da partida foi o advogado Afonso Celso Raso, de 87 anos, presidente de honra do América. Na época com 17 anos, ele já era apaixonado por futebol e sempre comparecia aos estádios. “Fui ao jogo com meu irmão, Pedrinho Raso. Conseguimos o ingresso porque atuávamos no juvenil do América. Waldir Lau, na época um jornalista bem-conceituado, e que treinava o time, nos conseguiu ingresso e nos deu a chance de presenciar uma partida de Copa. O resultado foi surpreendente, e o Independência foi falado no mundo inteiro".




Mesmo tendo se passado 70 anos, Afonso se lembra bem de várias passagens daquele jogo: “Tinha um jogador norte-americano que usava luvas para lembrar que não podia colocar a mão na bola. A Inglaterra tinha um time bem certinho, que ficava com a bola, trocava passes, jogava muitos pelas laterais e centrava bola na área. A tônica do jogo foi quase sempre a Inglaterra atacando e os EUA se defendendo. Mas eles fizeram o gol e não teve jeito. Os ingleses martelaram, mas não conseguiram empatar”.


Jornais ingleses da época não acreditaram no resultado. Tanto é que vários deles publicaram placares diferentes, como 10 a 1 ou 5 a 1. Os ingleses foram eliminados na fase inicial depois de perder para a Espanha por 1 a 0, no Maracanã. Os EUA também ficaram de fora, ao serem goleados pelo Chile por 5 a 2, no Recife.

OBRAS ATRASADAS

O Independência começou a ser construído em 1949, depois que a Fifa vetou o Alameda (campo do América) por falta de estrutura. O novo estádio foi uma ideia do então prefeito de Belo Horizonte, Otacílio Negrão de Lima, que negociava com a CBD para a capital receber pelo menos seis jogos da Copa. Inicialmente, o Independência teria capacidade para 80 mil pessoas, mas o projeto teve redução depois de a CBD confirmar apenas três partidas para a cidade. As obras tiveram atraso e só foram concluídas após o fim do Mundial. “O projeto original foi abandonado, sem o fechamento da ferradura. Mas isso não impediu a realização da Copa. As críticas e cobranças ao prefeito em março de 1950 em relação ao término das obras foram rapidamente substituídas por um apoio incondicional, depois que a CBD definiu a tabela”, afirmou o coordenador do programa de pós-graduação em história da UFSJ, Euclides Couto.