Jornal Estado de Minas

FUTEBOL FEMININO

#Praentender Os desafios de Pia Sundhage na Seleção e a desigualdade no futebol feminino do Brasil



A estreia da sueca Pia Sundhage no comando da Seleção Brasileira, nesta quinta-feira, às 21h30, em amistoso contra a Argentina, no Pacaembu, pode significar o início de uma nova fase para o futebol feminino do Brasil. Pelo menos essa é a esperança de quem acompanha o trabalho da treinadora, bicampeã olímpica com os Estados Unidos (Pequim'2008 e Londres'2012) e medalha prata nos Jogos do Rio'2016 com a Suécia. Mas, para que Pia seja essa mola propulsora que o futebol feminino do Brasil precisa, serão necessárias muitas mudanças, sobretudo estruturais. O cenário que ela encontra no país é de algum amadorismo, pouco investimento e ainda muito preconceito.

- Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A. Press Para a ex-capitã da Seleção Aline Pellegrino – integrou o time prata em Atenas'2004, campeão pan-americano e vice do Mundial em 2007 –, que desde 2016 coordena o Departamento de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol, a palavra-chave para o sucesso de Pia será tempo. “É preciso ter paciência. Dar crédito a ela. Será um trabalho de reestruturação.
A Pia fala em no mínimo dois anos para essa transformação começar a ser vista. E acho que é por aí”, destaca a ex-zagueira.

Apesar de conhecer bem os problemas que assolam a modalidade, Aline se diz otimista: “Poderíamos estar mais evoluídos, mas a Pia não começa um trabalho do zero. Existe um caminho, temos talentos, precisamos é trabalhá-los melhor. Aproveitar muito tudo isso o que ela viveu, tudo o que sabe. Temos de sugar o máximo possível”.

Coordenadora do futebol feminino do Atlético há oito meses, Nina Abreu, que por 25 anos foi assessora na Federação Mineira de Futebol, coloca o dedo na ferida. “O futebol que a Pia encontra ainda é um futebol desestruturado, e eu estou falando de estrutura física num primeiro momento”, ressalta. 

 

Ela acredita que a sueca chega ao Brasil em um momento crucial, e a presença da treinadora pode ser determinante para que o projeto comece a decolar: “Em 25 anos de federação, observei o futebol feminino sobreviver. É uma fatia da sociedade que não tem como ser ignorada mais.
De forma muito providencial, a Fifa obrigou a Conmebol, que obrigou a CBF, que obrigou as federações, que obrigaram os times a abraçar essa camada e ajudar a dar espaço para esses talentos. A gente tem uma grande referência, que é a Marta, mas pode ter certeza de que há várias outras Martas por aí esperando uma chance, se soubermos lapidá-las e se elas tiverem a perseverança que a Marta teve”.

Embora ainda não tenha completado um mês de trabalho, Pia já começou a fazer mudanças sensíveis. Uma delas é a aproximação com os clubes, como conta Bárbara Fonseca, que há seis anos trabalha com gestão no futebol feminino e desde fevereiro coordena a modalidade no Cruzeiro – inclusive já colheu os primeiros frutos, com o time celeste sendo vice-campeão brasileiro A-2 e garantido na Primeira Divisão Nacional do ano que vem. 

“Em seis anos de futebol feminino, nunca vi o Vadão (ex-técnico da Seleção feminina). Em duas semanas no cargo, a Pia já foi ao encontro dos clubes. Ela esteve no primeiro jogo da final da A-2, no Pacaembu, e não ficou no camarote não. Ao lado da Bia Vaz, que é a assistente dela, desceu para o vestiário, do Cruzeiro e do São Paulo. Perguntou sobre o trabalho, as jogadoras. Também já foi ver o Flamengo, o Corinthians...
Isso mostra que ela está preocupada em conhecer as equipes, em entender o que está sendo feito. Então, acho que começa bem”, declara Bárbara.

Diferenças

É fato que Pia vai encontrar um panorama muito heterogêneo no Brasil. De um lado, as equipes paulistas, em um estágio mais avançado por estarem em um estado onde o futebol feminino vem sendo trabalhado há mais tempo e também por integrarem um mercado onde circula mais dinheiro – e, consequentemente, há mais investimento.

A realidade na maior parte do país, no entanto, é outra. Até os clubes “de camisa”, que foram obrigados a incorporar o futebol feminino sob pena de punição inclusive em âmbito internacional, encontram dificuldade para tocar seus projetos. Além disso, as mulheres não dispõem da mesma estrutura oferecida aos homens – por vezes, nem treinam no mesmo CT. Em Minas Gerais, o time feminino do América trabalha no Baleião, Região Leste de BH; o do Atlético treina no campo sintético da Cidade do Galo (que conta com sete campos de grama); e o do Cruzeiro, apesar das Tocas da Raposa I e II, usa as instalações na Puc do Coração Eucarístico.



Para quem trabalha na área, no entanto, cada pequeno avanço é um grande passo. “Na última semana de julho, viemos para a Cidade do Galo. Antes, treinávamos em um campo alugado, de grama sintética. Aos poucos, o Atlético está entendendo a modalidade, com a estrutura do masculino contemplando o feminino. Hoje, elas contam com refeitório, auditório, e tivemos dois projetos aprovados na lei de incentivo fiscal do estado, que foi uma batalha do jurídico do clube.
Teremos empresas patrocinando o time, com o nome na camisa”, conta Nina.

Bárbara também procura olhar o cenário por um viés positivo. “Tenho uma visão muito realista, precisamos entender a complexidade que envolve o futebol feminino. Primeiramente, há uma questão cultural. O futebol ainda é todo idealizado para atender ao masculino. A nossa palavra de ordem é conquistar: a diretoria, o torcedor, e com isso vai vir o patrocinador, etc.”, comenta.

Ela ressalta a necessidade de escolher as lutas na busca pelo crescimento: “Nunca serei uma gestora de chegar e bater o pé na porta. São degraus que vamos subindo. E a gente não pode errar, porque o ambiente é machista. Estamos em um processo de evolução. Ainda é desconfortável para algumas pessoas entenderem o futebol feminino como possível.
É um absurdo dizer isso, mas é a realidade. As pessoas têm um olhar preconceituoso. O cenário é esse, não fico com discurso vitimista. Busco alternativas para quebrarmos os paradigmas”. E é essa quebra de paradigmas que Pia também deve significar para o futebol brasileiro.

Na história

Quem conhece a CBF de perto também já vislumbra a atuação da treinadora em questões cruciais internas. Na primeira convocação da Seleção Brasileira, estiveram presentes as comissões técnicas da equipe principal, do Sub-17 e do Sub-20 femininos. Pela primeira vez na história, as mulheres foram maioria nesse contexto. 

Como treinadora do time Sub-17 do Brasil foi escolhida a ex-lateral Simone Jatobá (que tem a licença A da Uefa), recomendada por Pia. Simone, por sua vez, indicou outras ex-jogadoras: Maravilha, como preparadora de goleiras – é a primeira vez que uma mulher exerce essa função em uma Seleção Brasileira –, e Lindsay Camila como auxiliar. 

A presença feminina cada vez maior é importante para abrir caminhos e estimular outras mulheres a seguir no futebol, campo ainda restrito para elas. E há exemplos em Minas para ajudar a comprovar tal tese. Como Thays Guimarães, de 31 anos, auxiliar técnica do Atlético e futura treinadora da equipe.

Ela começou como jogadora, em Ponte Nova, onde nasceu, e desde cedo sabia a profissão que queria trilhar. “Sempre quis ser treinadora de futebol, masculino ou feminino.” Para tanto, fez faculdade de educação física e depois o Curso de Especialização em Futebol da Universidade de Viçosa. Na sala de aula, entre 50 alunos, eram apenas duas mulheres, recorda-se.

Médica do América e das Seleções de base, Flávia Magalhães precisou de muita persistência para seguir na carreira - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press

“Sempre faltou oportunidade. Quando a gente começa, imagina que a porta não vai abrir, principalmente em clubes profissionais. Começou a mudar agora. As pessoas passam a ver que não é questão de gênero. Futebol é 11 contra 11. Muda biologicamente, pela questão da força, da velocidade, que a mulher tem menos, mas o jogo é o mesmo”, diz.

E não é apenas dentro das quatro linhas que as mulheres encontram obstáculos. Flávia Magalhães, de 43, médica do América e das Seleções Brasileiras de base, sentiu isso na pele. Ela começou a jogar ainda criança, integrou o time do Atlético e só não se dedicou à vida de jogadora porque a mãe a proibiu, “para não ficar com a perna roxa”. 

Sair do futebol, entretanto, estava fora de questão. Ela se formou em nutrição, e depois em medicina, fazendo residência em medicina esportiva. Sua primeira experiência foi no Mamoré, em 2001. Em 2006, ingressou no Atlético, como estagiária. Foi contratada em 2009 e ficou no clube oito anos, atendendo à base e ao feminino. Neste ano, foi contratada pelo América, onde também atua no profissional masculino. “É um reconhecimento ao meu trabalho, à minha luta no futebol, que vem de muitos anos.”

Pia, de 59 anos, faz sua primeira partida como treinadora do time do Brasil em amistoso contra a Argentina, no Pacaembu - Foto: DANIEL MIHAILESCU/AFPA oportunidade na Seleção Brasileira veio em 2014. Desde então, é convocada para acompanhar o Sub-17 e também já trabalhou ao lado de Marta e companhia, na profissional. No currículo de Flávia ainda está passagem pela Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos.

A trajetória é, indubitavelmente, vitoriosa, mas não têm sido poucos os percalços. E ela acredita que, se não fosse por ser mulher, teria alcançado mais: “É um cenário que vivencio há 16, 17 anos, e chega um médico que, por ser homem, ocupa um espaço que eu deveria ocupar por méritos. Passo coisas que são formas de preconceito e que tento absorver e falar para mim mesma que preciso ter resiliência. Muita gente diz que já teria desistido. Se fosse homem, eu teria progredido muito mais, até mesmo no Atlético”.

Não bastassem as dificuldades naturais da carreira, Flávia precisa se desdobrar como mãe de dois garotos, Carlos Eduardo, de 4 anos, e Luís Felipe, de 2. Isso nunca a impediu, contudo, de desempenhar bem seu papel: “Na primeira convocação para a Seleção, eu amamentava o primeiro filho. Tirava o leite materno e doava na cidade em que estávamos. No Sul-Americano de 2016, na Venezuela, estava grávida do segundo, e fiquei ansiosa para saber se seria chamada. E fui, de barrigão de seis meses e tudo”.

A jornada não é fácil, e isso acaba influenciando na oferta de mulheres para trabalhar no futebol. Diante dos obstáculos, há quem mude o rumo da carreira no meio do caminho. Em alguns cargos, como o de gestão, a representatividade ainda é mínima. Bárbara Fonseca diz que o Cruzeiro está aberto para a presença feminina, porém, é necessário qualificação maior às candidatas. 


  


Enquanto isso...

...Nova reunião do Mineiro feminino

A Federação Mineira de Futebol (que não tem um departamento de futebol feminino) ainda não bateu o martelo com os clubes a respeito do Campeonato Mineiro, marcado para começar em 15 de setembro. O ponto de discórdia tem sido a taxa de arbitragem, que a entidade absorveu em edições anteriores e agora cobra o pagamento pelas equipes. Num momento em que o futebol feminino mais precisa de apoio para deslanchar, era esperada outra postura da FMF, que isenta da taxa de arbitragem alguns organizadores de torneio de futebol amador que reúne times de BH e região metropolitana. Nesta quinta-feira, a federação vai convocar os clubes para nova reunião, na segunda-feira, para tratar o assunto. 
 


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