Eu vi o Galo ser pentacampeão em 1982. Meu pai, à época pouco afeito ao futebol, vascaíno não praticante em tempos ainda mais idos, resolveu me levar “no campo”, tarefa até então a cargo de tios, primos e cunhados da minha mãe. Atleticanos comuns, ou seja, fanáticos fundamentalistas para quem o mistério da vida estava resolvido. Doncovim, quencossô, proncovô? Nós somos do Clube Atlético Mineiro, e nossa razão de existir é ver o Galo jogar.
Pois fomos eu e meu pai de cadeira numerada, restrita àquele tempo às imediações das cabines de rádio e TV. À nossa frente, do outro lado do campo, desfraldava-se aquele povaréu com suas centenas, talvez milhares de faixas e bandeiras, um assustador conluio entre milhões de fundamentalistas em sessão de descarrego de igreja evangélica.
Nesses primórdios, a Igreja Universal do Reino do Galo tinha por púlpito principal a Super Força Viva, que ficava bem no meio da arquibancada, animada pela velha Charanga. Do seu lado direito havia os Dragões da FAO, a Falange Atleticana Organizada, cujo lema, do alto dos meus minguados 10 anos, me escapava a compreensão: “Filosofia máxima de um povo”. Ainda assim, submetido desde muito cedo a um intenso processo de catequese, aquilo arrepiava até os meus inexistentes pentelhos. A torcida do Atlético era o espetáculo mais bonito do mundo.
A gente ainda não cantava aquela “Eu não vou de cadeira numerada, vou sentar na arquibancada pra sentir mais emoção”.
O Atlético precisava de uma vitória simples sobre o Cruzeiro, que saíra na frente com um gol de vantagem. O Galo precisava virar. Em 1982, tudo era esperança, tudo era uma grande virada. O Brasil saía de duas décadas de ditadura, os exilados tinham voltado, um metalúrgico era candidato ao governo de São Paulo, havia um país a se construir. O movimento punk já pisava as rosas de Geraldo Vandré e fazia de Amélia uma mulher qualquer (viva o Clemente!) – e do Aborto Elétrico seria parido o rock de Brasília, a espraiar-se por Rio e São Paulo.
Distraídos, empatamos. No crepúsculo daquela tarde de domingo, holofotes já acesos, desabou sobre o Mineirão uma chuva avassaladora. Da cobertura de concreto fez-se um véu de noiva a embaçar levemente o povão do outro lado, em sua ensandecida certeza de que valia a pena, o Galo era o time da virada, o Galo era o time do amor, e nada naquela hora podia impedir o inevitável gol do título.
Eu me encontrava sentado no desconforto da cadeira, chapado pela beleza que se descortinava na nossa frente. 100 mil, 500 mil pessoas. Estaria toda a cidade sentada do outro lado do campo? Meu pai, pessoa de pouca fé, olhava aquilo como se tivesse visto Deus. Isso, claro, na minha cabeça de menino – um pequeno fundamentalista prestes a ver o milagre.
Na minha cabeça de menino, houve uma falta entre a meia-lua e o grande círculo central. Uma bomba rasteira, o campo encharcado. A bola estoura no peito do goleiro, o frango escapa, ela sobra oferecida ao artilheiro, o único maior do que Pelé, o gol completamente aberto, o gol feito, a bola a um passo da linha, parada na poça, todos aqueles metros escancarados entre as duas traves, oferecidas.
Quando penso nisso, ouço o mais absoluto silêncio.
“Qual é o seu ideal de felicidade?”, pergunta o famoso Questionário Proust. Aquele gol. Aquela chuva. Aquele Atlético e Cruzeiro em que a gente precisava de uma vitória simples, e ela veio monumental. Que coisa. Amanhã, “no campo”, estarei eu e o meu filho a perseguir a mesma vitória simples, a mesma virada, o mesmo gol.