Um estudo liderado pelo Cleveland Clinic Children's, nos Estados Unidos, testou, pela primeira vez, uma terapia celular de edição genética para corrigir a mutação responsável pela doença falciforme. Conforme a pesquisa, apresentada no Congresso Híbrido da European Hematology Association, em Frankfurt, na Alemanha, os pacientes submetidos ao tratamento ficaram livres das dores causadas pela doença por até 11 meses.





 

Quatro voluntários foram submetidos à terapia. Eles tiveram as células-tronco coletadas para a realização da edição genética. Em seguida, foram submetidos à quimioterapia para destruir a medula óssea restante no organismo, o que abriu espaço para que as células tratadas com a edição genética fossem colocadas de volta ao corpo.

 

Em aproximadamente quatro semanas, todos os voluntários tinham novos glóbulos brancos e não haviam apresentado reações adversas graves. Os cientistas também observaram que os pacientes atingiram um nível normal de hemoglobina, componente mais importante dos glóbulos vermelhos e que, nas pessoas com a doença falciforme, é produzido de forma anormal (Leia Para saber mais). Além disso, os pacientes ficaram livres de crises de dor ligadas à enfermidade por um período entre sete e 11 meses, o período em que foram acompanhados.

 

Líder da pesquisa, Rabi Hanna conta que, apesar dos resultados promissores, o tratamento não é uma cura nem impede que filhos e filhas de pessoas com a doença também enfrentem o problema. "O objetivo do ensaio clínico foi estudar a eficácia e a segurança da edição da hemoglobina de forma a aumentar a hemoglobina fetal, que fornece proteção contra crises de dor e danos aos órgãos. A abordagem poderia potencialmente ser chamada de 'cura funcional', mas não tira o efeito que já aconteceu devido à doença nem altera os genes da linhagem germinativa, que dão origem aos gametas."





 

NOVO HEMOGRAMA Eduardo Flavio Ribeiro, hematologista e coordenador do Centro de Oncologia e Hematologia do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, participou do lançamento do ensaio, na Alemanha, e conta que os quatro participantes tiveram o hemograma normalizado após a terapia de edição genética. Na avaliação do médico brasileiro, o uso da abordagem tem maiores vantagens para pessoas jovens. "Essa terapia, até o momento, não é capaz de corrigir as sequelas que acometem os pacientes. Portanto, a relevância é muito grande para aqueles que são crianças e ainda não desenvolveram as complicações crônicas."

 

Uma nova etapa da pesquisa está sendo projetada e deverá contar com a participação de 40 pessoas, com idade entre 18 e 50 anos, diagnosticadas com doença falciforme grave. Elas serão monitoradas por até dois anos. "O que foi apresentado no congresso são resultados preliminares, dados de segurança, de que os pacientes estão vivos e bem. O resultado final será comparando o desfecho com um número maior de pacientes, quando todos estiverem prontos para serem analisados. Esse trabalho é uma enorme esperança", explica Ribeiro.

 

Segundo o médico, alguns outros tratamentos inovadores vêm sendo criados para melhorar a vida dos pacientes, mas o acesso a eles é limitado. "Nos últimos anos, tivemos algumas aprovações de novas terapias para evitar as crises agudas. Há alternativas que já estão até disponíveis no Brasil, mas que o acesso ainda é difícil porque são medicações caras. Viabilizar isso no sistema de saúde público é fundamental e ajuda a vencer um pouco da desigualdade que existe no país."





 
 

Saiba mais
GLÓBULOS EM FOICE 

 
A anemia falciforme é uma doença genética em que a hemoglobina, proteína responsável pelo transporte de oxigênio nos glóbulos vermelhos, é anormal. Os glóbulos vermelhos, que normalmente são redondos e flexíveis, tornam-se rígidos e em forma de foice — um formato que impede que as células sanguíneas circulem livremente nos pequenos vasos sanguíneos do corpo. Entre as complicações, estão o armazenamento de ferro no fígado e no coração, que pode levar a problemas como fibrose hepática, insuficiência hepática, acidente vascular cerebral e insuficiência cardíaca.
A doença é mais frequente em pessoas afrodescendentes. Segundo dados do governo federal, estima-se que há entre 60 mil e 100 mil pessoas com a patologia no Brasil. Entre 2014 e 2020, a média anual de novos casos de crianças diagnosticadas com a doença no Programa Nacional de Triagem Neonatal foi de 1.087, o que significa 3,78 casos a cada 10 mil nascidos vivos.
 

Condição inviabilizada pelo racismo

 
Ele insistiu, perturbou, implorou. Elvis Magalhães, de 21 anos, não iria desistir. Estava internado no Hospital Universitário de Brasília (HUB), por causa da anemia falciforme, e não deixou em paz a médica até que ela permitisse que ele fosse para o show da banda favorita, a Legião Urbana, naquele 18 de junho de 1988 (há 35 anos), no Estádio Mané Garrincha, com cerca de 50 mil pessoas.





Mas a apresentação terminou em confusão e antes do tempo previsto. O jovem goiano radicado em Brasília, e com nome de astro do rock, saiu encolhido. Teve medo. Além da situação, sentia as dores no corpo causadas pela doença. Mas não se arrepende. "Nem foi tempo perdido. Somos tão jovens", cantou Renato Russo para alegria de Elvis.

Elvis também queria cantar, se divertir. “A música da minha vida é aquela. Quem acredita sempre alcança" (Mais uma vez, da Legião Urbana). Além das lembranças do show, junho virou um mês forte para ele por outro motivo. O dia 19 viria a ser, a partir de 2008, o da conscientização mundial sobre a doença falciforme. Junho virou mês de cantar mais alto.

Elvis faz o som ir longe contra o racismo (a maior parte dos pacientes é negra) e também a invisibilidade que, segundo ele e outras pessoas consultadas pela Agência Brasil, comprometem o atendimento no sistema público.





O ativista e coordenador científico da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal) foi o paciente mais velho do Brasil a receber o transplante de medula óssea para se curar da doença.

A anemia falciforme tem característica hereditária (pode passar de pais para filhos, se ambos os genitores tiverem o traço da doença). Ocorre por causa de uma mutação genética, com a alteração no formato das hemácias (formato de meia-lua ou foice).

Isso gera um problema na produção da hemoglobina, proteína que dá a cor vermelha ao sangue e é responsável por transportar o oxigênio pelo corpo. A doença ocorre por lesões vasculares e anormalidades na coagulação. Entre os sintomas, dores fortes pelo corpo e cansaço.





TRANSPLANTE Hoje, aos 56, o ex-relojoeiro diz que nunca deixou de acreditar e insistir com outras pessoas na luta contra a doença, que causa dores fortes e que pode levar à morte. Após “centenas de internações”, ele foi curado graças a um transplante de medula óssea (mais tarde também precisou receber um fígado). 

Elvis pede políticas públicas e denuncia que a doença é invisibilizada pelo racismo estrutural. “A doença foi diagnosticada há mais de um século e só foi avançar nas políticas públicas em 2005”, afirma.

No caso de Elvis, os pais descobriram a doença quando ainda era criança. Ele conviveu com dores indefiníveis e incontáveis internações. O problema só foi resolvido com o transplante de medula óssea. Ele foi um dos primeiros casos no Brasil. “Fui indicado porque tinha muita crise de dor. Em 2005, fez o procedimento na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de Ribeirão Preto (SP). 





Para realizar o transplante, ele descobriu que o irmão, Elder, quatro anos mais novo (que não tinha a doença) era 100% compatível. Atualmente, o coordenador científico da entidade de paciente com a doença explica que o procedimento tem sido feito até com compatibilidade de 50% entre paciente e doador. 

Elvis tinha 38 anos de idade quando se submeteu ao procedimento para colocar fim às crises em que precisava até de morfina para amenizar a dor. Outra terapia que o relojoeiro descobriu foi escrever. Fez uma autobiografia: Quatro décadas de lua minguante.
 
Páginas especiais são dedicadas ao irmão. “Nunca briguei na vida com ele. Sempre foi um amigo. Tinha certeza de que ele era compatível”. O irmão, Elder, sabe que Elvis faria o mesmo por ele se precisasse. “Foi emocionante quando soube que poderia ajudá-lo.” (Luiz Cláudio Ferreira/Agência Brasil) 

compartilhe