Um ano depois da alta hospitalar, sobreviventes da forma grave da COVID-19, que precisaram de ventilação mecânica, têm o dobro de prevalência de sintomas de estresse pós-traumático, mais dificuldades para retornar ao trabalho e outras incapacidades do que aqueles que tiveram formas menos graves da doença.





 

Os resultados são de um estudo publicado na semana passada em uma revista científica de medicina intensiva, realizado entre março de 2020 e março de 2022 em 84 hospitais ligados à Coalizão COVID-19, uma aliança para a condução de pesquisas que envolve várias instituições de ponta como Albert Einstein, Sírio-Libanês, Oswaldo Cruz, Beneficência Portuguesa (em São Paulo) e Moinhos de Vento (em Porto Alegre).

 

Os pacientes foram comparados de acordo com a gravidade da doença: desde aqueles internados que não precisaram de oxigênio até os que necessitaram de intubação (ventilação mecânica).

 

Entre os 1.508 inscritos no estudo, 36 morreram antes de completar um ano de acompanhamento. A taxa de mortalidade por todas as causas entre os que foram intubados foi de 7,9%. A de pessoas que tiveram a forma menos grave de COVID foi de 1,2%.



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O estudo mostrou que 1 em cada 4 pessoas intubadas precisou ser internada novamente ao longo dos 12 meses subsequentes (24% contra 19,6%). O índice de eventos cardiovasculares, como o infarto, também foi mais do que o dobro em relação àquelas não precisaram de ventilação mecânica (5,6% contra 2,3%).

Alerta para pacientes, familiares e gestores de saúde

"Os resultados servem de alerta não só para os pacientes que tiveram COVID grave e seus familiares como também para os gestores de saúde. pode ser um marcador de fácil reconhecimento para a identificação de pacientes com maior risco e para ajudar a traçar metas de reabilitação", diz o médico intensivista Regis Goulart Rosa, pesquisador do Hospital Moinhos de Vento e autor principal do estudo.

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Segundo a pesquisa, é alto o percentual de pacientes que relataram novas incapacidades, como dificuldade de se locomover, um ano após a internação (40,4% contra 23,5%). Eles também têm menor taxa de retorno ao trabalho (88,1% contra 97,5%) e aos estudos (88,9% contra 96,9%).





 

"O acompanhamento e os cuidados mais personalizados desses pacientes também podem significar uma boa relação de custo e efetividade para os sistemas de saúde. Se a pessoa reinterna menos, consegue retornar mais rapidamente à sociedade, ao seu trabalho, aos estudos, todos ganham com isso."

A intubação e o impacto na saúde mental 

O estudo revela ainda que pacientes que passaram por intubação sofrem grande impacto na saúde mental. A prevalência do transtorno do estresse pós-traumático entre eles foi o dobro em relação ao grupo com menos gravidade (14% contra 7%). Um em cada quatro apresentou sintomas de ansiedade (24,7% contra 17,5%).

A idade média dos participantes do estudo foi de 53 anos; 60,8% eram homens. Hipertensão (45%), obesidade (30%) e diabetes (24%) estão entre as comorbidades mais prevalentes. A duração média da ventilação mecânica durante a internação foi de 10 dias.



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Outros estudos já apontaram que pacientes com COVID-19 que precisaram de ventilação mecânica têm maior probabilidade de apresentar marcadores inflamatórios elevados, envolvimento pulmonar mais extenso, disfunção de múltiplos órgãos e maior mortalidade hospitalar. "A ventilação mecânica é um tratamento muito eficaz, salva vidas, mas não é isento de efeitos adversos", afirma Regis Rosa.

A literatura científica mostra que fatores como sedação profunda, medicamentos (agentes bloqueadores neuromusculares e corticosteroides), imobilização e pneumonia estão associados a piores resultados a longo prazo, com fraqueza adquirida na UTI, estresse pós-traumático, mortalidade pós-alta e qualidade de vida reduzida.

Os autores do estudo apontam ainda que a superlotação das UTIs causada pela pandemia de COVID-19 também pode ter sido associada a uma menor adesão a intervenções destinadas a prevenir incapacidades de longo prazo entre pacientes ventilados mecanicamente. Entre elas estão minimizar a sedação e o uso de agentes bloqueadores neuromusculares, controle da dor, mobilização precoce e presença da família.



Milhares de paciente sofrendo de algum grau de acomentimento da COVID

O Brasil já registrou, desde o início da pandemia, mais de 36 milhões de casos de Covid e cerca de 695 mil mortes. "Temos milhares de pessoas sofrendo de algum grau de acometimento da COVID. E já sabemos por outros estudos que não são apenas os casos graves os afetados . Precisamos de mais pesquisa para entender essa nova condição, os fatores de risco, além de reconhecer e oferecer reabilitação a esses pacientes", afirma Regis Rosa.

Na opinião da médica intensivista Suzana Lobo, que esteve à frente da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) no período crítico da pandemia, o impacto a longo prazo dos casos mais graves de COVID já era uma tragédia anunciada.

"Por inúmeras vezes, nós, das sociedades científicas e cientistas, alertamos para os riscos de complicações de longo prazo e o impacto na qualidade de vida. Conhecemos isso muito bem há décadas por causa da sepse bacteriana com a qual convivemos diariamente nas nossas UTIs. E a COVID-19 nada mais é que uma sepse viral", explica.





Lobo lembra que em uma reunião em abril de 2021 com o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, a Amib alertou sobre a necessidade de preparo e de investimentos em reabilitação para os próximos cinco anos, em que haveria milhares de sequelados da COVID-19.

A pesquisa também alerta para a necessidade de rastreamento dos pacientes pós-alta, pois muitos morrem em decorrência de complicações da doença, mas constam nos levantamentos como recuperados. Outra medida importante é preparar os profissionais para atuarem precocemente na reabilitação.

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A relação entre a gravidade da COVID-19 e a maior ocorrência de eventos cardiovasculares é um outro achado que preocupa os pesquisadores. "Essa associação não é nova e existe em outros quadros, como de sepse grave, que causam disfunção orgânica. Há um risco maior de acometimento do miocárdio, de arritmias. É grande a preocupação com o aumento da incidência desses eventos nesses anos seguintes à pandemia", diz Rosa.





O estudo tem algumas limitações, como o fato de que a COVID-19 pode ter efeitos diferentes nos resultados de longo prazo em contextos distintos, por exemplo, pacientes com acesso precoce a serviços de reabilitação no pós-alta.

Também não foram avaliadas variáveis que poderiam, em tese, modificar a associação entre a gravidade aguda da Covid-19 e desfechos de longo prazo, como vacinação, infecção por diferentes variantes de Sars-CoV-2 e tratamentos específicos.

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