O Senado continuará, nesta quarta-feira (6/12), as votações da chamada PEC (proposta de emenda constitucional) da Transição. A medida ganhou esse apelido porque vem sendo desenhada por aliados do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e é considerada vital para cumprir uma das principais promessas de campanha de Lula: o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 em 2023. Nesta terça-feira, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou o relatório da PEC que deverá ser votado no plenário da Casa hoje.
Mas a matemática que deputados e senadores estão debatendo não se limita apenas a reservar dinheiro para pagar o benefício.
Se a PEC for aprovada conforme o relatório que passou pela CCJ, o novo governo terá à sua disposição, além dos estimados R$ 145 bilhões para o Auxílio Brasil, um valor aproximado de R$ 75 bilhões que ele poderá destinar a programas e projetos considerados estratégicos. Esses R$ 75 bilhões são referentes ao orçamento inicialmente programado para atender o Auxílio Brasil e que estariam sujeitos ao teto de gastos.
Parte desse dinheiro poderá, inclusive, ser destinado a alimentar o "orçamento secreto", termo usado para designar as emendas parlamentares do relator-geral do Orçamento da União.
Segundo críticos, elas foram usadas para garantir apoio parlamentar ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e o presidente eleito Lula prometeu tentar acabar. O nome "orçamento secreto" se deve à pouca transparência sobre os reais autores dessas emendas.
Políticos e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que programas como o Farmácia Popular e o pagamento de despesas em outras áreas da saúde e da educação deverão receber a maior parte desses recursos, mas não descartam que esse dinheiro poderá, sim, abastecer o "orçamento secreto".
Antes de passar às principais áreas que poderão ser beneficiadas com esses recursos, confira como está a discussão sobre a PEC da Transição.
PEC da Transição
O relatório aprovado na terça-feira pela CCJ do Senado prevê uma ampliação do teto de gastos de até R$ 168,9 bilhões para os anos de 2023 e 2024.
Desse total, R$ 145 bilhões serão destinados ao pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 e um bônus de R$ 150 para cada família com criança de até seis anos de idade.
O restante, R$ 23,9 bilhões, seriam destinados a despesas relativas a investimentos.
O texto aprovado é diferente do que foi proposto pela equipe de transição em diversos pontos: As principais mudanças são:
O texto inicial previa que as despesas com o Auxílio Brasil ficassem fora do teto por tempo indeterminado. Depois, o governo eleito aceitou reduzir esse prazo para quatro anos, mas num valor aproximado de R$ 198 bilhões. O projeto aprovado na CCJ, porém, prevê uma ampliação do teto de gastos de até R$ 168,9 bilhões válida por apenas dois anos nos anos de 2023 e 2024.
O texto que foi à votação na CCJ obrigava o novo governo a estipular um novo regime fiscal até dezembro de 2023. O texto aprovado antecipou essa obrigação para agosto de 2023. Regime fiscal é um termo usado por economistas e que significa uma espécie de "linha-mestra" para nortear as finanças públicas. O atual regime fiscal é conhecido como "teto de gastos" que limita as despesas do governo federal ao valor gasto no ano anterior acrescido da inflação.
O texto inicial previa que o novo governo poderia gastar até R$ 23 bilhões referentes ao excesso de arrecadação com investimentos. O texto aprovado, no entanto, permite que esse gasto possa ser feito já em 2022, pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.
A PEC da Transição é considerada estratégica para o novo governo Lula porque permite que ele cumpra a promessa de manter o valor do Auxílio Brasil sem violar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o que poderia gerar eventuais pedidos de impeachment.
Saúde, educação e "orçamento secreto"
A economista e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carla Beni diz que, ao ampliar o teto de gastos e permitir que o novo governo destine até R$ 145 bilhões com o Auxílio Brasil, haverá uma "folga" de pelo menos R$ 75 bilhões no orçamento que o novo governo poderá usar com outras despesas.
O líder do PT na Câmara dos Deputados, Reginaldo Lopes (MG), disse à BBC News Brasil que as principais áreas que receberam esses recursos são: educação, saúde e infraestrutura. Segundo ele, a estimativa do novo governo é de que o dinheiro seja dividido da seguinte forma:
Educação - R$ 12 bilhões
Saúde - R$ 14,8 bilhões
Reajuste do salário mínimo acima da inflação - R$ 9 bilhões
Infraestrutura - R$ 15 bilhões
Moradia (programa Minha Casa Minha Vida) - R$ 6 bilhões
Merenda escolar, composição de estoques de alimentos e assentamentos - R$ 3 bilhões
Cultura - R$ 3,8 bilhões
Cirurgias eletivas - R$ 8 bilhões
No total, os valores citados por Lopes somam R$ 71,6 bilhões.
"O restante do dinheiro vai ser usado para recompor o orçamento de ministérios e dar continuidade a outros projetos que o governo considerar importante", disse o deputado.
Carla Beni disse que uma das principais alterações feitas à proposta original é a que permite que o atual governo possa se beneficiar da ampliação do teto de gastos.
Isso poderá acontecer porque o texto aprovado pela CCJ determina que a atual administração possa utilizar até R$ 23,9 bilhões referentes a excesso de arrecadação para custear investimentos. Essa brecha, diz a professora, possibilita que o atual governo tenha dinheiro para pagar as emendas do "orçamento secreto" que poderiam não ser pagas por falta de espaço orçamentário.
"O texto da PEC permite que esses recursos possam ser destinados ao orçamento secreto. É uma ironia, sim, porque se trata de um texto desenhado pela equipe de transição, mas que para ser aprovado, precisou ser alterado. Política, sem carga pejorativa, é assim", disse a professora.
Reginaldo Lopes admite que se o texto votado pela CCJ for promulgado, o governo Bolsonaro poderá, sim, pagar emendas do orçamento secreto. Segundo ele, no entanto, esse pagamento não poderia ser atribuído ao novo governo Lula.
"É Bolsonaro quem está no governo. Ele é que vai decidir como gastar o dinheiro. Essa conta não é nossa", disse.
Para o professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Cláudio Couto, a possibilidade de que a PEC da Transição possa abrir uma brecha para que emendas do orçamento secreto sejam pagas pelo governo Bolsonaro é resultado do processo de negociação política.
"Política implica em você fazer concessões. O governo eleito entendeu que a PEC é importante para os próximos anos e seus aliados fizeram uma concessão. Quando você tem um objetivo considerado mais importante no radar, às vezes, você precisa ceder", disse o professor.
O pagamento das emendas do orçamento secreto ainda deverá depender de um julgamento marcado para começar nesta quarta-feira.
Trata-se de uma ação movida pela oposição ao governo Bolsonaro que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e que pede o fim do pagamento das emendas.
O que falta para a PEC da Transição entrar em vigor?
A PEC da Transição ainda precisa ser aprovada em dois turnos pelo plenário da Câmara e do Senado e ter pelo menos três quintos dos votos em cada uma das votações. Se o texto for aprovado, ele segue para a promulgação. Por ser uma PEC, não é necessária a sanção presidencial. Os planos do governo eleito e de seus aliados no Congresso Nacional é que a PEC seja promulgada até o dia 16 de dezembro.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63886712