Jornal Estado de Minas

ELEIÇÕES 2022

Biopolítica: quando a cólera preenche uma multidão vazia


Se, tempos atrás, vivemos a era de aquário, historicamente presenciamos os períodos de grandes liberdades. Se também conhecemos, apoiados em Erick Hobsbawm, a era dos extremos, neste momento estamos testemunhando a Era da Cólera, esse estado permanente de raiva, gestado tecnicamente por meio de algoritmos, técnicas de comunicação em massa, estratégias confusas de relação com o conhecimento e com a verdade. 



Boca espumando, rosto avermelhado, voz alterada e coração acerelado. O que poderia parecer uma descrição médica acerca de alguma doença é, antes de tudo, um traço relevante dentro da análise do comportamento das massas, sobretudo quando falamos de biopolítica e disciplinarização dos corpos, termos utilizados por Michel Foucault.

O filósofo nos mostra que os poderes políticos utilizam de tecnologias apuradas para disciplinar, controlar e motivar nossas constituições biopsíquicas em prol de controles sociais que esvaziam os indivíduos da posse de suas próprias subjetividades. 

Como exemplo dessa perspectiva filosófica, podemos pensar no Brasil pós-eleições de 2022. O recorte temporal é apenas um marco histórico para depurarmos alguns elementos de análise que antecedem o que acontece hoje, por exemplo, na porta dos quartéis.



Presenciamos, a partir de 2013, uma certa massa disforme, não identificada com instituições políticas, ocupando as ruas, vociferando contra um inimigo abstrato, objetificado no aumento das passagens, na Copa do Mundo no Brasil, na retirada de um Chefe de Estado.

Há cerca de 9 anos fomos gestando, tecnologicamente, um elemento político que escapava às análises científicas: a cólera. 

Se o inimigo era abstrato e imaginário, o Estado, o Governo, a CBF, as grandes corporações, o efeito no corpo dos indivíduos era demasiadamente real. O estado permanente de raiva, que podemos chamar de alimento de fácil acesso para uma cólera, era um sentimento concreto, percebido não nas imagens da televisão ou nos vídeos em plataformas, mas nas redes neurais e nos componentes orgânicos de cada ser vivente.

Resumindo, esse estado colérico se constitui em uma potência de realidade que nenhuma construção abstrata é capaz de conter, após sua manifestação. Bastava aos interessados nesse controle biopolítico apenas canalizar esse sentimento para objetos específicos.  

Por esse motivo, falar em igualdade, liberdade, fraternidade, democracia e justiça social faz pouco sentido diante de sujeitos que, em estado de delírio colérico, desejam se interpor diante da felicidade do outro que consegue comemorar o fim de um governo ou, para alguma parcela, o início de outro. Pois é disso que se trata.



Isso talvez seja o maior efeito das últimas eleições, não necessariamente a alegria pelas vagas propostas apresentadas pelo governo eleito, mas a satisfação pelo fim de uma narrativa que colocava em xeque a democracia liberal. Dessa forma, a sociedade colérica se consolida em um sentimento de destruição relativo a qualquer tipo de manifestação de alegria.

Por esse motivo os alvos prediletos são as artes, a cultura, o processo de humanização ou o conhecimento científico historicamente construído. É por isso que, em situações coléricas, o estado de alegria do Outro é uma espécie de afronta ao ódio gestado pela tecnologia do poder.

O que observamos no Brasil, nesse momento, é uma tecnologia biopolítica para que a o sentimento constante de raiva se mostre como definidor das decisões éticas de cada membro da sociedade. Nesse estado de ânimo das massas não existem pautas propositivas, mas apenas a expressão material de uma pulsão de morte que prega o fim e a destruição.



Não nos esqueçamos: o ódio tem um poder de atratividade muito maior que o amor. Essa é uma premissa fundamental para se “fazer política”. Mais que apontar caminhos de investimento, proposições de melhora para a vida em sociedade, que no estado atual das coisas acabam virando memes ou fake news, a estrutura política das redes sociais é eficiente em incitar a cólera, conseguindo catalisar a raiva social para um inimigo comum, imaginário ou real.

Com isso, o medo, anteriormente inominável, é organizado para o enfrentamento de supostos invasores, na tentativa de restaurar uma suposta ordem perdida em algum lugar fantasioso da história. 

É fácil sentir, ao longo do dia, insatisfações múltiplas. Elas constituem um importante elemento psíquico que representa, inclusive, o custo de uma vida em sociedade. No entanto, quando a economia não vai bem, ou quando a vida privada não confere prazer ao sujeito que pretende realizar-se em seu lar, em seu trabalho ou em sua vida amorosa, devemos ficar atentos para que as tecnologias biopolíticas de poder não nos catalisem.

Esse movimento estratégico nos faz passar de indivíduos, com frustrações normais e pessoais, para um homem-massa, com a cólera gestada politicamente para benefícios ideológicos. 

Por isso, os afetos biopolíticos, que parecem despercebidos a olhos nus, como a cólera, por exemplo, se sustentam, principalmente, em uma suposta ameaça de morte. Os lunáticos passam a fazer previsões de fases catastróficas, risco iminente de vida e suposta perda de algo vital para qualquer população. Com a “doença” detectada, passam a apresentar uma espécie de “medicina” para a saúde social.



Geralmente, o antídoto se mostra como um saber hermético no qual apenas os “eleitos” detém esse poder. Além de se sentirem extremamente importantes, afinal de contas, são possuidores de uma cura para toda a sociedade, passam a acreditar em uma tarefa messiânica para extirpar todo o mal. Nesse campo se enquadram todas as teorias da conspiração, a raiva contra grupos minoritários e a destruição de qualquer elemento cultural.  

Nesse cenário descrito, surge a pergunta: mas como se livrar disso tudo? Lógico que a resposta pode ser bem mais complexa e, nesse caso, dependerá, exclusivamente, da força individual, base iminente de um pensamento liberal. Alguns irão se salvar pelo conhecimento, outros irão se curar pela cultura, alguns terão que trabalhar até desgastar toda a desorganização alucinante, outros buscarão tratamento medicamentoso e acompanhamento terapêutico. No entanto, para casos mais graves, talvez apenas a internação psiquiátrica seja a solução.