Brasília - Idealizado há 27 anos pelo Foro de São Paulo, o projeto de governos de esquerda para a América Latina deu errado. O PT, afundado na maior crise ética de sua história, deixou como herança uma recessão profunda da qual o Brasil ainda luta para se livrar. Na Argentina, o segundo principal país do continente, foi eleito um presidente alinhado ao setor produtivo - como uma maneira de se contrapor aos anos de kirchnerismo. E a Venezuela caminha para uma guerra civil e o recrudescimento de um regime ditatorial sob o comando do presidente Nicolás Maduro.
O Foro de São Paulo reunia partidos de esquerda e representantes de movimentos sociais, capitaneados pelo PT e pelo seu principal líder, Luiz Inácio Lula da Silva, que planejavam criar um discurso unificado contra o neoliberalismo e exportar, para o continente, um modelo de oposição ao status quo político reinante. Com a chegada de Lula ao Planalto, em 2003 - nesse ano, Hugo Chávez já havia sofrido tentativa de golpe na Venezuela -, houve uma onda de governos eleitos com viés socialista no continente, sendo os mais expressivos o casal Kirchner, na Argentina; Evo Morales, na Bolívia; Rafael Correa, no Equador; Tabaré Vasquez e Pepe Mujica, no Uruguai; Fernando Lugo, no Paraguai; e Michelle Bachelet, no Chile.
“Apesar de ter havido melhora social significativa nos países governados por líderes que se identificam com a esquerda, em termos econômicos houve subestimação do fim do ciclo das commodities e dificuldade em manter os gastos sociais diante de um cenário mais desfavorável”, pontua a pesquisadora do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp, Carolina Silva Pedroso. “De certa forma, governar para gerar resultados bons a curto prazo faz parte do jogo democrático, e, mesmo que alguns deles tenham conseguido acumular reservas internacionais no boom dos preços dos produtos primários, esse ‘colchão’ não parece ter sido suficiente para evitar a debacle econômica que, em maior ou menor grau, atingiu todos os países”, completa.
O segundo mais relevante país do continente é um exemplo. Desde o início da década de 1990, a Argentina vive assolada em crises econômicas. Ao longo dos governos do casal Kirchner - sobretudo na gestão de Cristina -, as métricas econômicas eram manipuladas, o que levou o Fundo Monetário Internacional a impor sanções ao país. “Essas medidas ultraprotecionistas, aliadas a uma base econômica reduzida, quebraram o país”, afirma a estrategista macroeconômica da XP Investimentos com base em Nova York, Daphne Wlasek.
CONFIANÇA
Nem mesmo o Chile, apontado como modelo, por causa da reforma da educação e da Previdência, escapa das dificuldades. A presidente Michelle Bachelet, eleita em 2013 após passar quatro anos na oposição, enfrenta os menores índices de popularidade da gestão. “As reformas implantadas e as políticas do governo atual minaram a confiança do empresariado. Houve outros fatores que levaram a economia chilena a crescer a mais ou menos 1,5% este ano, enquanto no período antes da crise e até mesmo antes de Bachelet assumir, a economia crescia a mais ou menos 4%”, diz o estrategista de macroeconomia da XP Alvaro Mollica.
“Hoje, vivemos um momento inverso, caracterizado pelas mudanças de governo no Brasil e na Argentina - os dois maiores países da região - e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o que mostra uma diminuição da influência do pensamento de esquerda na região”, avalia o professor de ciência política do Ibmec/MG Oswaldo Dehon. Ele, contudo, acrescenta que, mesmo antes dessa experiência socialista, não dá para dizer que a região vivia uma fase completamente liberal. “Especialmente por causa do discurso intervencionista proferido por Ronald Reagan, muitos dos governos sul-americanos, bem como os empresários que aqui atuavam, tinham uma ligação próxima ao Estado”, prossegue Dehon.
Para o professor de ciência política do Ibmec, é um equívoco dar um protagonismo exagerado ao Foro de São Paulo neste processo, lembrando que outras associações políticas e a própria realidade regional ajudaram na chegada dos governos de esquerda ao poder praticamente no mesmo período. “Foi fruto do fracasso das políticas neoliberais promovidas pelos governos de Fernando Henrique Cardoso (Brasil); Alberto Fujimori (Peru), Carlos Menem (Argentina), Gonzalo Sanchez de Lozada (Bolívia) e Carlos Andrés Perez (Venezuela)”, aposta a secretária de Relações Internacionais do PT, Monica Valente.
Venezuela é o maior sintoma
Brasília - A crise na Venezuela talvez seja o sintoma mais agudo da derrocada do discurso socialista na região. Na sexta-feira, o presidente Nicolas Maduro encaminhou à Assembleia Nacional Constituinte, composta somente por representantes alinhados ao governo, uma proposta de prisão por até 25 anos para quem for às ruas incitar um discurso de ódio. Já são mais de 120 mortos nos confrontos dos manifestantes com a polícia. A radicalização no discurso é ainda mais perigosa porque o maior país do continente, os Estados Unidos, estão sendo governados por Donald Trump. E ele avisou, também na sexta, que poderá utilizar a força militar no país. “A Venezuela é um desastre muito perigoso”, disse Trump.
A relação do PT com a Venezuela vive um momento delicado. O ex-presidente Lula, que sempre foi considerado um espelho e o grande irmão pelos governantes bolivarianos da região, tem evitado expor opiniões muito contundentes sobre a crise venezuelana. Diferentemente da presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, durante discurso no 23º Encontro do Foro de São Paulo, realizado em 17 de julho, em Manágua, capital da Nicarágua. “O PT manifesta seu apoio e solidariedade ao governo do PSUV, seus aliados e ao presidente Nicolás Maduro frente à violenta ofensiva da direita contra o governo da Venezuela e condenamos o recente ataque terrorista contra a Corte Suprema. Temos a expectativa de que a Assembleia Constituinte possa contribuir para uma consolidação cada vez maior da revolução bolivariana e que as divergências políticas se resolvam de forma pacífica”, disse Gleisi.
Lula, enquanto presidente, sempre teve uma relação pragmática e cuidadosa com os bolivarianos. Quando assumiu a Presidência, em 2003, o petista criou o grupo batizado de Amigos da Venezuela, composto por Chile, Espanha, Estados Unidos, México e Portugal, que atuou para colocar fim a uma greve de mais de 45 dias da oposição venezuelana após a tentativa de um golpe fracassado contra Hugo Chávez. Em uma das várias crises políticas vividas no país vizinho, Lula chegou a ser pressionado por aliados a não elogiar Chávez de maneira tão contundente.
“Vocês me arrumem um parceiro comercial que me dê US$ 5 bilhões de superávit na balança e eu prometo que largo Chávez no dia seguinte”, devolveu Lula. Era o momento do ciclo do petróleo em alta, o que permitia aos venezuelanos terem poder de compra elevado. “Não estou aqui avalizando o que está acontecendo na Venezuela. Mas é bom lembrar que existem vários interesses externos nesse conflito porque é um país importante geopoliticamente por causa do petróleo”, destacou o ex-presidente nacional do PT, ex-ministro e ex-deputado Ricardo Berzoini.
POLÍTICA X ECONOMIA
Petistas lembram que a postura de Lula perante os bolivarianos, especialmente a Venezuela, era movida por interesses também políticos, não apenas econômicos. O petista desfilava pela esquerda europeia com desenvoltura em um momento em que os socialistas haviam sido varridos do continente. Por aqui, mantinha a porta aberta com Chávez, Evo Morales, Rafael Correia e o casal Kirchner, que era mais populista como herdeiros do peronismo do que, necessariamente, socialista.
Servia também para conter os radicais internos, enquanto promovia ações econômicas pouco afeitas à esquerda. “É bom lembrar que o nosso governo tinha Roberto Rodrigues (Agricultura), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento, Indústria e Comércio) e Henrique Meirelles (Banco Central)”, exemplificou Berzoini. Para alguns petistas, o erro do atual governo foi encurralar Maduro. “O PT e nossos governos sempre atuaram pelo fortalecimento do diálogo. O governo Temer e o Itamaraty causam vergonha por suas atitudes incendiárias na crise do país vizinho”, acusou a secretária de Relações Internacionais do PT, Monica Valente.