Em 12 de março de 2015, qualquer jornalista ficaria em dúvida a respeito de uma declaração do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), quando respondeu ao deputado Delegado Waldir (PSDB-GO) sobre possuir dinheiro no exterior. O peemedebista havia garantido na CPI da Petrobras que não tinha recebido qualquer propina relacionada à petroleira ou às investigações da Operação Lava-Jato. “Não tenho qualquer tipo de conta em qualquer lugar que não seja a conta que está declarada no meu Imposto de Renda”, afirmou Cunha aos parlamentares.
A dúvida era se eventualmente ele tivesse alguma empresa offshore, que poderia, essa sim, ser dona de uma conta bancária controlada por ele. O Estado de Minas/Correio Braziliense abordou Cunha no anexo II da Câmara, entre o saguão e uma rampa que dá acesso ao plenário da Casa, depois que o então deputado acabava de sair de uma entrevista com outros jornalistas sem responder a essa dúvida adicional: “Presidente, o senhor mantém algum recurso no exterior em offshore?”
Cunha foi mais categórico. “Não, eu não tenho nada. Se eu não respondi, me perdoe. Foi a ânsia de querer completar tudo. Não tenho nenhum recurso, não sou sócio de nenhuma empresa.
Um mês depois, o Ministério Público da Suíça enviava ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, do Ministério da Justiça, papéis com as contas de Cunha em nome das offshores Orion SP, Triumph e Netherton, além de uma outra relacionada à sua esposa. As informações vieram a público no segundo semestre, quando o castelo de poder de Eduardo Cunha começava a ruir, até culminar com seu afastamento do mandato, sua cassação e a prisão em 2016, por ordem do juiz Sérgio Moro.
Fora do poder, o ex-deputado prometeu escrever um livro em que contaria os bastidores do impeachment de Dilma Rousseff, a ex-presidente que ele ajudou a derrubar em meio à tormenta que também sofria. A partir de investigações da Operação Lava-Jato, com informações obtidas com a Polícia Federal, o Ministério Público, advogados e o próprio Cunha, o EM/Correio escreve o que seria o primeiro capítulo de um livro sobre o poder e os negócios do ex-presidente da Câmara.
Capítulo 1
“Agora é comigo”
O dissabor já durava três anos. Em 2010, Fernando Antônio Falcão Soares, o “Fernando Baiano”, estava numa encruzilhada cada vez mais apertada.
No caso, Júlio acertou uma grande empreitada em favor do sul-coreanos em 2006 e 2007. Conseguiu que o estaleiro Samsung, em parceria com a Mitsui, negociasse dois navios com a Petrobras, as sondas Vitória 10.000 e Petrobras 10.000. A bolada chegava a US$ 1,2 bilhão. Para isso, Júlio pediu um adicional em suas comissões, a fim de “agradar” a um funcionário da petroleira em particular, que foi responsável por viabilizar a empreitada: o então diretor de Internacional Nestor Cerveró. Pai de um ator de teatro e acometido por uma espécie de ptose, que faz a pálpebra cair sobre seu olho esquerdo, Cerveró recomendou que os pagamentos fossem feitos para Fernando Baiano, a fim de não chamar a atenção.
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Valendo-se dessa recente relação, Fernando Baiano propõe ao deputado cobrar a diferença de propina que Júlio lhe devia. Em troca, daria 20% ao parlamentar, que, assim, poderia resolver problemas de financiamento de campanha das eleições. Numa primeira conversa, Baiano usou o nome de caciques do PMDB para impressionar Cunha como beneficiários da propina. Júlio Camargo seguia prometendo pagar.
No segundo semestre de 2010, Baiano vai ao condomínio onde Cunha mora, na Barra da Tijuca, no Rio. Um balde de água fria. Cunha disse ao operador que estava em plena campanha e “não tinha tempo” para tratar daquilo. Ficou para depois.
Baiano foi reclamar com Camargo e usou seu pistolão: “Estou vindo na qualidade de seu amigo”, alertou. “Quero te dizer o seguinte: eu tenho um compromisso com o deputado Eduardo Cunha.”
Em 2011, Cunha acertou fazer requerimentos na Comissão de Fiscalização da Câmara sobre as empresas que Júlio Camargo representava. O objetivo era intimidar o lobista a pagar logo as propinas. Os requerimentos foram feitos, mas por uma aliada do parlamentar, a hoje prefeita de Ribeirão Bonito (RJ), Solange Almeida (PMDB). Júlio Camargo ficou assustado. Pediu ajuda ao então diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa. A princípio, deu certo. Conseguiu uma reunião rápida entre ele e o ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, que reclamou com Eduardo Cunha.
Mas nada se resolvia ainda assim. As cobranças não paravam e os pagamentos também não voltavam.
Júlio disse que estava com problemas, que não queria “ficar mal” com o deputado e que ia pagar, mas de forma parcelada. Houve divergência sobre o total da dívida e os três acertaram que ela seria, ao final, reduzida para “apenas” US$ 10 milhões. Metade ficaria com Eduardo Cunha. Para agradar ao deputado, Camargo disse que pagaria primeiro os US$ 5 milhões dele. Cunha não aceitou: eles deveriam receber juntos.
Cunha e Baiano rejeitaram a proposta de receber os valores em contas no Brasil por meio de notas frias. O acerto foi receber o dinheiro em espécie, em parcelas até setembro de 2012. Eduardo Cunha disse que isso garantiria o financiamento das campanhas eleitorais na corrida às prefeituras. A partir dali, as coisas se normalizaram.
Júlio Camargo fez um empréstimo com o doleiro Alberto Youssef, que repassou dinheiro em espécie para Baiano, que por sua vez o entregou a Cunha. Parte do dinheiro foi parar até na igreja. O católico Júlio fez duas doações à igreja evangélica Assembleia de Deus de Madureira, no Rio. Os dois pagamentos de R$ 125 mil foram ordem de Cunha, que é assembleiano e ligado aos pastores da igreja.
A cada domingo, um novo capítulo
Celulares desmentem reuniões, diz defesa
Ao contrário do que dizem delatores e investigadores da Lava-Jato, a defesa de Eduardo Cunha nega que ele tenha participado de reuniões no Leblon ou tenha recebido telefonema do ex-ministro Edison Lobão à época. Segundo petição do advogado Ticiano Figueiredo à Justiça, uma quebra de sigilos do ex-parlamentar informando a posição de seus telefones a partir das torres de celular demonstrará que ele nunca esteve no edifício no Leblon em 18 de setembro de 2011, como indicado por Fernando Baiano e Júlio Camargo. Figueiredo requereu a quebra do sigilo de três linhas de Cunha além do pedido de informações ao condomínio. A defesa ainda pediu a quebra dos sigilos de Lobão para provar que não houve conversa entre os dois na data indicada por Camargo. .