Jornal Estado de Minas

PENSAR

Rio Guaporé inspira livro de estreia do biólogo Eurico Cabral

 
Ana Clara Parreiras
Especial para o EM
 
O que é um rio? Bonito, incerto e intenso. Podem ser rasos ou profundos; calmos ou agitados; podem te levar a um caminho ou vários. São uma metáfora para a vida, com uma surpresa a cada curva. 





Nascido em Jaboticabal, no interior de São Paulo, Eurico Cabral sempre navegou pelas águas calmas da biologia. Foi professor, se tornou uma referência na sua área, com estudos relevantes sobre a vida marinha, e conta com inúmeros livros técnicos publicados, inclusive no exterior. 

Ao 83 anos, uma nova correnteza o levou a outros caminhos: a ficção literária. “Esta foi a minha primeira aventura no mundo do romance. É uma obra baseada na minha experiência real. O que eu conto no livro, é um resumo do que vivi, ouvi e também imaginei”, esclarece.

Não por acaso, o Rio Guaporé, afluente do Amazonas, que banha os estados de Rondônia e Mato Grosso, batiza o livro e serve de pano de fundo para os seus personagens. Pai e filha, Tião e Luz vivem juntos à beira do corpo d'água e enfrentam dilemas comuns sofridos por vidas do chamado Brasil profundo – espaço marcado pela ausência do Estado –, como pobreza, seca e escravização moderna.




 

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O afluente que levou Eurico até o seu primeiro romance entrou em seu percurso por volta de 1980, enquanto estava no exterior. “Morei um tempo no Canadá, onde eu conheci canoas, tipo canoa de índio mesmo, só que feita de fibra. Se tornou uma das minhas paixões, principalmente depois de aposentado”, conta. 

Ao retornar para o Brasil, decidiu que não iria abandonar a canoagem. Encomendou uma nova canoa e começou a se aventurar pelos rios brasileiros. Entre uma remada e outra, foi criando coragem e ampliando suas expedições. 

“Eu remo há anos e já viajei por centenas de rios. O Brasil é uma maravilha para quem sabe andar de canoa. Comecei ao redor do estado de São Paulo, depois fui para o Brasil central: Mato Grosso, Amazonas e Tocantins, segui por essas áreas ", relembra.




 

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Apesar de perigosas, as aventuras de canoa traziam para Eurico sensações de conforto, liberdade e autonomia, que o incentivaram a ir enfrentando as correntezas da vida. Como todo bom professor, ia anotando em um caderninho o que achava de interessante nas suas excursões, fossem paisagens, animais, plantas, diálogos ou contato com os ribeirinhos. 

“Eu, como naturalista apaixonado pela natureza, tinha oportunidade de ver de perto o que falava dentro de sala de aula. Então era um prazer sair e identificar as coisas. A partir disso, o que eu ia vendo, tomava notas e de repente veio um livro”, conta. 

Por se passar no interior mato-grossense, "Guaporé" ecoa o clássico de Guimarães Rosa, "Grande sertão: veredas", obra fundamental sobre o Brasil profundo. A sensação fica ainda mais evidente com os diálogos, que reproduzem expressões e palavras utilizadas pelos que vivem na região. 




 

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Os desdobramentos moralmente complexos, trágicos e conflitantes também deixam claro que a paisagem que cerca os personagens não é idílica. Pelo contrário: a violência e brutalidade da selva e do sertão pairam no texto, como que uma ameaça constante e um lembrete de que Tião e Luz não estão a salvo. 

Dividido em quatro partes, o livro conduz o leitor pelas paisagens, sons e movimentos do sertão. Junto aos personagens principais, vamos descobrindo, a cada nova página, como viver à margem do rio e da sociedade. Ecoando também outro clássico da literatura brasileiras, "Vidas secas" de Graciliano Ramos, que é marcante pelo pouco uso de fala de seus personagens.

Logo nas primeiras páginas, o espectador se depara com um crime, tornando-se cúmplice e curioso para desvendar as próximas páginas da obra. O romance revela um Brasil atual emendado nas belezas naturais do Piauí às margens do Rio Guaporé. 





“Eu não tentei entrar muito em detalhes políticos do Estado. Eu só constatei sobre pessoas que vivem em completo isolamento. Uma vida deve ser difícil e por um lado simples, sem tantas modernidades também”, esclarece. 

Ler “Guaporé” é embarcar em uma aventura nas águas pelo interior do Brasil. Prepare seus remos.
 
 
“Guaporé”
  • De Eurico Cabral
  • Record
  • 256 páginas
  • R$ 54,90 

Entrevista/ Eurico Cabral 
(biólogo e escritor)

 
Você tem carreira acadêmica reconhecida e estabelecida dentro da sua área. O que o motivou a escrever um romance? Podemos falar que o livro tem tom autobiográfico? 
 
Essa foi a minha primeira aventura no mundo do romance. É uma ficção baseada na minha experiência real. O que eu conto é o que eu vivi, ouvi e também imaginei,  baseado na minha experiência de biólogo e de aventureiro. Grande parte das coisas aconteceram, algumas eu imaginei.
 
Sou formado em biologia, apaixonado por plantas e animais. Sou muito aventureiro e uma das minhas paixões, principalmente depois de aposentado, é andar em canoas, tipo canoa de índio, só que é feita de fibra. Eu remo e já viajei por centenas de rios, o Brasil é uma maravilha pra quem sabe andar de canoa.




 
Como naturalista, apaixonado pela natureza, tinha oportunidade de ver de perto o que falava dentro de sala de aula, então era um prazer sair e identificar as coisas que eu ia vendo, tomando notas.
 
Uma vez , me deu uma loucura de remar sozinho. O livro “Guaporé” é baseado especialmente numa delas. Eu enganei minha família aqui e fiquei 10 dias remando sozinho, apenas com um mapa e uma bússola.

E como foi o seu processo de escrita? Você é daqueles que anota aos poucos, ou senta e escreve de uma vez só?
 
Eu acordo cedinho, remo, como alguma coisa no caminho, e depois de umas quatro horas, bem antes de escurecer, você tem que procurar um lugar para você parar para acampar e montar uma barraca. Escureceu, você vai pra barraca.
 
O livro não é só sobre essa vez que remei sozinho, mas é um conjunto de experiências de muitas remadas de várias camadas e várias aventuras. Eu comecei a remar com muita frequência de 2010 para cá, mas já remo desde 1980, por aí.




 
Morei um tempo no Canadá, onde conheci essas canoas leves. Minha vida profissional foi mais no mar, eu conheço o Brasil do Uruguai ao Amapá, andando a pé e coletando algas.
 
Conheço muito bem o litoral, mas tinha pouca experiência de Brasil Central. Atualmente, faço expedições mais curtas. Agora estou mais em casa, porque a minha esposa não fica sozinha, e ela reclama muito dessa viagem (risos).

Fala-se muito sobre a ausência do Estado nas periferias, mas no seu livro você aborda a ausência do Estado no interior rural do Brasil, também chamado de Brasil Profundo. Como essa ausência molda a vida, o cotidiano e as pessoas desses lugares? E como esses aspectos surgem no seu livro?
 
O que eu vi e percebi, ao encontrar uma comunidade ou algum morador ribeirinho, é que o Estado nem sabe da existência deles. Duvido até que entrem aí nas estatísticas do IBGE.
 
São lugares inacessíveis. Com uma canoa, você chega a muitos lugares onde não se chega com uma embarcação maior. Então, são comunidades muito isoladas.
 
Apesar disso, não entro muito em detalhes políticos do Estado. Eu só constatei que essas pessoas vivem em completo isolamento, em uma vida que deve ser difícil, mas por um lado simples, sem as modernidades. Quer dizer, tem dois lados, tudo tem vantagens e desvantagens. Mas eu não tenho, no livro, uma abordagem política.




 
É realmente um romance. Tem o personagem que veio da caatinga. São histórias que eu ouvi pessoas contarem. Eu relato no livro, mas tudo dentro de uma ficção.

Guimarães Rosa fez muito isso em suas obras: aproveitar a oralidade típica das pessoas. Ele te inspirou? 
 
Não sei, eu adoro Guimarães Rosa e procurei ter muito cuidado para não imitá-lo. Acho que ele é o máximo da literatura brasileira, não tem comparação. Um professor de literatura da USP que leu o livro disse que eu escrevo como Coelho Neto. Muitas pessoas falam: “Nossa, parece que eu tô lendo Guimarães”. Mas não tem comparação.

Você acha que o Centro-Oeste brasileiro, seja como cenário das obras, seja para literatura ou para o cinema, é pouco valorizado ainda no Brasil? 
 
Precisamos de investimento do governo para fazermos mais livros e filmes dessa região. Um amigo que leu o livro disse que dá um roteiro de filme fantástico, só que para você fazer um filme na natureza é um investimento caríssimo. O Brasil é um paraíso para as pessoas andarem de canoa, a gente não encontra outros canoeiros, não é? Mas aqui não é explorado o turismo fluvial.