Jornal Estado de Minas

PENSAR

Primeira leitura: 'Realejo dos mundos', de Adriana Lisboa

(a partir da peça multimídia homônima de Jocy de Oliveira)



Adriana Lisboa
Água do mar se abrindo. Memória de corsários e da coroa portuguesa disputando o ouro do Brasil. Memória dos séculos e milênios anteriores a corsários e coroas: ao que indicam as pistas deixadas pelo tempo, o território do que é hoje este país já estava ocupado faz doze mil anos. Quem andou por aqui, e como, antes dos nomes que conhecemos?

A baía tragou indiscriminadamente europeus e indígenas, afundou os seus corpos e os estufou e ofereceu de repasto a peixe. A carne foi amolecendo devagar, no ritmo da água, a carne humana temperada a sal e iodo, desmanchando-se na penumbra onde só chega um sol coado, vacilante, a carne se desmanchando na boca silenciosa dos bichos. Mas um piano talvez tenha sido a primeira vez. Céu limpo, a ondulação da água dizendo venha, aqui recebo carne de corsário ou madeira de uma caixa de ressonância, feltro, metal, tanto faz.





Uma mulher senta-se ao Steinway de cauda e toca, enquanto o instrumento submerge. O piano flutua por algum tempo, tendo sido cuidadosamente preparado para isso, já que o naufrágio não é por acaso. Execução ou libertação? As águas o sustentam momentaneamente, deixam que flutue como um barco, que debaixo do céu e do sol ele faça sua breve viagem inaugural – a única.

A pianista toca alguma coisa, no vídeo, mas não se ouve. O que ela toca não vem ao caso: o vídeo foi concebido para acompanhar uma música eletroacústica baseada em fragmentos do “Concerto para piano e orquestra número 21 em dó maior” de Mozart. Não sei quantas vezes Muri e eu já vimos esse vídeo, no passado: o “Noturno de um piano”, de Jocy de Oliveira.

Cada algo é um eco do nada, escreveu John Cage, um dos compositores da vida de Jocy (nós passamos a amá-lo também). Ao fim da tarde, já não se vê o piano. É um naufrágio sem pompa, sem espetáculo, imagino que o pianista nade de volta à praia, seque os cabelos. Que as pessoas regressem às suas casas, às suas mesas, sobre as quais são servidas refeições quentes, às suas camas, sobre as quais dormem pesado e têm sonhos particularmente vivos. Na noite do mar, o corpo de madeira está mudo sobre a areia fria.





O tempo vai se sedimentando ao redor do piano, fazendo-o entender sua nova situação, desembaraçada de melodia e acorde. Recobre-o de cracas, transforma-o em refúgio de peixes, como se fosse um primo distante dos corais. A madeira incha, entorta, compreendendo e aceitando o novo elemento. Debaixo d’água, em silêncio, o piano inicia uma outra vida.


Sobre o livro

“Realejo dos mundos”, romance de Adriana Lisboa, foi escrito em homenagem à peça homônima multimídia da compositora e artista multimídia Jocy de Oliveira. Após a leitura dos originais de Adriana Lisboa, Jocy elaborou outra obra: “Realejo de vida e morte”, roteiro com 46 cenas para o longa-metragem homônimo. “Ao ler o manuscrito, senti uma profunda empatia com a sua linguagem poética e decidi adaptá-lo, concomitantemente, para cinema e teatro”, conta a artista. “Minha interpretação do romance me instiga a refletir acerca de várias questões relevantes no mundo em que vivemos hoje, como o abandono, o meio ambiente, a incerteza, a desesperança, a solidão, a exclusão, o emprisionamento, a discriminação – embora, na minha interpretação do texto, não exista o fator temporal ou mesmo a definição muito clara de espaço”, complementa Jocy, na introdução.  A edição bilíngue (inglês-português) da editora mineira Relicário, coordenada pela editora Maíra Nassif, inclui o romance de Adriana, o roteiro de Jocy, mais fotografias e partituras para o filme, previsto para 2024, além de QR Code para audição das músicas simultaneamente com a leitura do roteiro. Com prefácio de Josélia Aguiar, que destaca o “pensamento artístico em progresso contínuo” de Jocy, “Realejo de vida e morte + Realejo dos mundos” tem 240 páginas e lançamentos marcados para o Rio de Janeiro (11/04, na Livraria da Travessa de Ipanema) e São Paulo (19/04, na Livraria da Travessa de Pinheiros).