Jornal Estado de Minas

PENSAR

Livro detalha comidas, bebidas e hábitos alimentares citados na Bíblia



“Felizes os convidados para a ceia do Senhor” – na voz do sacerdote, durante a missa, são essas as palavras que chamam os fiéis ao sacramento divino da comunhão. O “alimento”, a hóstia consagrada, representa o corpo de Cristo; e, quando umedecida no vinho, o corpo e o sangue de Cristo. Tem sido assim, ao longo dos séculos, o banquete da eucaristia servido nas celebrações que reúnem fé, cultura religiosa, história, alegria, e, principalmente, louvor a Deus. Mas, além do pão espiritual, o que há na mesa de Deus para os simples mortais, não importando sua crença?

A resposta, fruto de 10 anos de pesquisas e elaboração, chega na escrita da pernambucana Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, autora de “A mesa de Deus - Os alimentos da Bíblia”, lançamento da Editora Record. Em 384 páginas, com ilustração de pinturas famosas, a exemplo de “A última ceia”, de Leonardo da Vinci, e citação em destaque do papa Francisco, “O prazer de comer vem de Deus”, a obra parte dos primórdios da história da humanidade, quando a relação dos homens com os alimentos dizia respeito à própria sobrevivência. E acompanha povos e costumes do Antigo Testamento e do Novo Testamento

Escrito para leigos e entendidos no assunto, “independentemente da crença de cada um”, conforme diz a escritora, “A mesa de Deus” é para ser lido em qualquer época, mas, com certeza, ganha um sabor especial, trazendo conhecimento e encantamento, se iniciado neste período de quaresma.  “Procurei escrever um livro no qual estivessem todas as informações que pesquisei, ilustradas pelos versículos. E que fosse leve”, resume a autora.





Integrante da Academia Pernambucana de Letras, pesquisadora gastronômica, com várias obras publicadas, Maria Lecticia teve a ideia para o livro durante uma conversa com seu marido, José Paulo, e o então padre (hoje cardeal), dom Tolentino Mendonça, na Casa de Chá de Santa Isabel (antiga Vicentinas) no Largo do Rato, em Lisboa, Portugal.

“Aceitei o desafio sem me dar conta, naquele momento, da grande responsabilidade que seria, pois não tenho formação teológica, nem nunca tinha lido a Bíblia. Então, o primeiro passo foi procurar teólogos e estudiosos no assunto que me dessem o suporte que precisava, ou seja, tirar dúvidas, ajudar a interpretar algumas passagens bíblicas – até porque, como ensina Frederico Lourenço (professor português, especialista em literatura clássica e tradutor do grego para o português), a Bíblia pode ser lida de muitas maneiras –, e que fizessem, depois do texto pronto, a revisão final.”

A OBRA E O TEMPO 

Desafio feito, desafio aceito, e veio a missão de ler e reler o Livro dos Livros algumas vezes. “No princípio, marcando na própria Bíblia os versículos referentes a alimento. E aí tomei um susto, pois raras são as páginas que não tenham um versículo marcado: os alimentos estão ali por toda parte.”





 O processo de trabalho, na etapa seguinte, exigiu mais concentração e paciência, demandando passar para o computador os versículos marcados, conferir cada um, separá-los por assunto e descartar os que tinham a mesma ideia, apenas ditos de maneira diferente. “Também fazer toda uma pesquisa paralela para poder compreender muitas das histórias narradas na Bíblia, ou seja, o tempo histórico em que tudo ocorreu, as grandes civilizações daquele tempo – egípcia, mesopotâmia (assíria e Babilônia), persa, grega e romana – e saber ainda do lugar dos acontecimentos.”

 Sobre o trabalho durante década, Maria Lecticia explica que estabeleceu com o chamado livro sagrado do cristianismo uma relação muito próxima. “Fui compreendendo sua importância. É fundamental fonte de pesquisa para quem, claro, estuda as religiões, mas também essencial para quem estuda história, geografia, antropologia, sociologia, ética, política, costumes, artes e literatura. Não é por acaso que as grandes universidades (Harvard, Princeton, Yale, Oxford e Cambridge) estudam a Bíblia em matérias não religiosas. Ali estão textos milenares que falam do início da nossa civilização.”

CAMINHADA

 O fascínio pelos 73 livros que compõem o Antigo e o Novo Testamento ampliou os horizontes. “Minha intenção foi pesquisar os alimentos, as bebidas e os hábitos alimentares que estão na Bíblia. E também, e sobretudo, a importância de cada um desses alimentos para aquele povo de Deus nos diversos momentos de sua caminhada.” A escritora pernambucana cita novamente Frederico Lourenço, para quem “independentemente de ter ou não ter fé, a Bíblia é um dos mais fascinantes livros alguma vez já escrito”.





 Impossível não perguntar à autora de qual celebração bíblica gostaria de ter participado – afinal, estão ali das origens do universo, da vida humana e animal, a trajetória do povo hebreu e de outros povos da Antiguidade, a vida de Jesus Cristo, de profetas e sábios, de reis e tiranos, permeados por cantos, hinos, provérbios, poesias, epístolas e orações. Eis o pensamento de Maria Lecticia:

  “Jesus compreendeu que a mesa ‘constitui, sempre, um dos fortes, se não o mais forte, alicerce das sociedades humanas. Constitui a melhor e a mais solene cerimônia que os homens acharam para consagrar todos os seus grandes atos, imprimindo-lhe um caráter de união e de comunhão’, segundo Eça de Queiroz. Assim, inaugurou um novo tempo, pregando a inclusão de todos em volta dessa mesa. Com amigos e inimigos, mulheres e homens, doentes e sãos, ricos e mendigos, santos e pecadores. Gostaria de ter participado de uma dessas refeições.”

ERVAS E CEREAIS

Em seus estudos, Maria Lecticia verificou que a cozinha da Bíblia se fazia com grande quantidade de ervas, especiarias, cereais e leguminosas, usados na preparação de pratos ou na fabricação de pão e cerveja, trazidos, em caravanas, da Índia e da península Arábica. “Produtos, às vezes, secos, por serem mais fáceis de conservar. Usavam azeite de oliva. Da uva, faziam vinho e vinagre. Do leite de cabra, ovelha e vaca, preparavam queijos frescos ou secos (conservados no sal). Adoçavam os alimentos com mel de abelha que, à época, nada era tão doce.” Logo na abertura da obra, registrou: “Todos os que forem deixados na terra se alimentarão de coalhada e de mel” (Is 7, 22)”.

Em “A mesa de Deus”, são apresentadas e analisadas não apenas as referências aos principais alimentos e ingredientes dos tempos bíblicos, a exemplo de cereais, carnes, frutos, temperos, azeite, mel, leite etc., mas também as ligadas aos utensílios para o preparo, aos rituais de que eram parte importante, aos significados espirituais de cada um, entre vários aspectos práticos e simbólicos a eles relacionados.





 No prefácio, o cardeal dom José Tolentino Mendonça lembra “entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que possa supor. E também mais espiritual. O título escolhido para esta obra está certo. E o livro dá a provar o que promete. Maria Lecticia oferece-nos aqui uma daquelas experiências que não vamos querer esquecer.”

 Também colunista do jornal “Folha de Pernambuco”, Maria Lecticia é autora dos livros “Açúcar no tacho” (2007), “O negro açúcar” (2008), “História dos sabores pernambucanos” (2009), “Esses pratos maravilhosos e seus nomes esquisitos” (2013), “Gilberto Freyre e as aventuras do paladar” (2013) e “Açúcar – uma História” (no prelo).

A autora do livro, Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti: pesquisa

Sagrados frutos da terra

1) Pão
“O pão esteve presente, sempre, em todas as culturas. Mas só depois de algumas conquistas: o domínio do fogo, o início da agricultura, o desenvolvimento da cerâmica. Em potes de barro, eram postos, no fogo, água e grãos. Em seguida, também azeite. Para que durassem por mais tempo, aquelas papas, começaram a ressecá-las, diretamente no fogo ou sobre pedras naturalmente aquecidas pelo sol. Nasciam, assim, os primeiros pães, ainda rudimentares.”





2) Vinho
“Não se sabe exatamente quando nem onde foram produzidos os primeiros vinhos. (...)  As mais antigas sementes (de uva), datadas por marcação de carbono entre 7000 e  5000anos a.C, foram encontradas em Byblos (Líbano), Catal Hüyük (Turquia), Damasco (Síria), Geórgia e Jordânia. Remontam ao período em que os homens passaram de nômades para uma vida sedentária e começar a plantar. (...) Na Bíblia, há 230 menções ao vinho.”
 
3) Vinagre
“O ‘vinus acrem’ nasceu junto com o vinho. É que, por vezes, o próprio vinho se convertia em vinagre (ácido acético); não se conseguindo explicar, naquele tempo, a razão. (...) No início, o vinagre foi usado apenas como remédio. O médico e filósofo grego Hipócrates (460-370 a.C), considerado o pai da medicina, receitava duas colheres de sopa, depois das refeições, para ajudar na digestão. Talvez pela mesma razão, consta na Bíblia, que ‘Booz disse a Rute (serva que trabalhava num campo de trigo): ‘Vem cá, come deste pão e molha teu bocado no vinagre’ (Rt 2,14).
 
4) Azeite
“Oliveira é uma das árvores mais importantes da Bíblia. (...) A árvore é originária da Ásia Menor, ‘onde se encontram os mais antigos vestígios da sua cultura’. A partir de lá, por toda a orla do Mediterrâneo, que tinha ‘outonos chuvosos, invernos suaves e os verões secos e quentes com grande luminosidade’ (...). Na Antiguidade, o azeite foi utilizado para muitos fins e reverenciado por todas as culturas. No início, era usado como combustível de iluminação, cosmético, perfume remédio ou em cerimônias religiosas.”




 
5) Mel 
“Desde a mais remota Antiguidade, o mel esteve sempre ligado à história dos homens, e à dos deuses, também.(...) No Egito, era usado para embalsamar mortos ilustres. E, na Palestina, simbolizava fartura. ‘Terra de trigo e cevada, de vinhas, figueiras e romãzeiras, terras de oliveira, de azeite e de mel’ (Dt 8,8) (...) Canaã, a Terra Prometida, seria essa ‘terra que mana leite e mel’ (Nm 14,8).” 
 
6 ) Sal
“Nenhum alimento carrega mais simbolismo do que o sal. É assim desde as mais antigas civilizações, E, também na Bíblia. O recém-nascido é purificado com ele. ‘Por ocasião do teu nascimento, ao vires ao mundo, não cortaram teu cordão umbilical, não foste lavada para tua purificação, não foste esfregada com sal’ (Ez 14,4). É sinal de sabedoria, “a vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal (Cl 4,6). E de amor ao próximo, ‘o sal é bom (...) Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros’ (Mc 9,50).”
 
7) Leite e derivados
“Na Bíblia, há numerosas referências ao leite. Talvez por conta da escassez de água, e de sua má qualidade, nas terras áridas ou semiáridas da Palestina (e seu entorno), era usado, por muitas vezes, apenas para matar a sede. ‘Comerão teus frutos e beberão teu leite’ (Ez 25, 4). A escolha, nos primeiros tempos, dependia menos do gosto e mais do animal disponível no curral. (...) Derivados do leite – coalhada, manteiga, queijo – são, também, referidos na Bíblia. É que o leite, àquele tempo, frequentemente talhava, sem que se compreendesse a razão”.
 
8) Água
“No início do Gênesis, ‘um sopro de Deus agitava a superfície das águas’ (Gn 1, 2). Ele disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas’ (Gn 1,6), e que as ‘águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar e que apareça o continente’ (Gn 1,9). Deus, depois, ‘chamou ao continente terra e à massa das águas, mares’ (Gn 1,10). (...) Em muitas passagens da Bíblia, se vê a importância da água. Moisés foi retirado dos ‘juncos, à beira do Rio’ (Ex 2,3).”





Fonte: “A mesa de Deus – Os alimentos da Bíblia”, de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti


“A mesa de Deus – Os alimentos da Bíblia”
•Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
•Editora Record
•384 páginas
•R$ 74,90