Sergio Karam
Especial para o EM
“A cidade e a casa”, de 1984, foi o último romance publicado pela italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), agora lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em tradução de Iara Machado Pinheiro. Assim como “Caro Michele”, de 1973, é um romance epistolar, mas nele a autora não se vale de nada além das cartas propriamente ditas, ao passo que no romance de 1973 ainda há trechos descritivos e alguns diálogos. Nesse sentido, é uma radicalização do processo – não que um romance epistolar fosse exatamente uma novidade em meados dos anos 1980.
Novidade ou não, o que realmente importa é a capacidade que Ginzburg tem de dar vida aos personagens usando exclusivamente as cartas que eles enviam uns aos outros. A história que ela conta é basicamente uma história de desagregação familiar, de relações afetivas complicadas (tem alguma que não seja?), de viagens de seus personagens dentro e fora da Itália, de mudanças de domicílio, de amizades improváveis, de amores ou quase-amores de todo tipo. E tudo chega ao leitor na linguagem elegante e límpida de Ginzburg, avessa ao palavreado obscuro, a mesma linguagem que ela utilizava em seus ensaios.
Aliás, um dos grandes prazeres proporcionados pela leitura de qualquer livro de Natalia Ginzburg é perceber essa continuidade de linguagem entre seus livros de ficção e seus livros de ensaios, algo que se reflete até mesmo nos discursos que ela proferia como deputada eleita pelo Partido Comunista italiano, a julgar pelos trechos reproduzidos numa biografia da autora. Em qualquer dos casos, é como se ela estivesse conversando conosco, em linguagem acessível, mas intensa e luminosa em sua generosidade.
Turma de escritores
Natalia Ginzburg integrou aquela turma de escritores ligados à editora italiana Einaudi, junto a Cesare Pavese, Elio Vittorini e Italo Calvino, autores que, além de escreverem seus próprios livros, atuaram como editores de outros – não à toa há um livro de Calvino chamado “I libri degli altri”, traduzido para o espanhol por Aurora Bernárdez (Editorial Siruela, 2014), mas não para o português brasileiro (alô, alô, editoras!).
Salvo engano, Ginzburg foi a primeira dentre eles a ter um livro traduzido no Brasil – seu terceiro romance, “Tutti i nostri ieri”, de 1952, saiu aqui com o título de “A vida não se importa”, já em 1960, pela editora Ibrasa. Depois disso, iriam se passar 26 anos até que ela tivesse outros livros traduzidos no Brasil: em 1986, foi publicada uma nova tradução de “Tutti i nostri ieri”, dessa vez com o título de “Todas as nossas lembranças”, pela Art Editora, na coleção As escritoras, e uma primeira tradução do romance “Caro Michele”, pela Editora Paz e Terra, na coleção Mulheres e literatura. Dois anos depois, dentro da mesma coleção da Paz e Terra, publicou-se o romance “Léxico familiar”, de 1963, seu livro mais conhecido.
Um salto de dez anos nos leva até 1998, quando se publica uma tradução do primeiro romance de Ginzburg, “O caminho que leva à cidade”, pela editora Primeira Edição, tradução assinada por uma certa Denise Tornimparte, que faz uma graça com o fato de Ginzburg ter publicado esse romance, em 1942, sob o pseudônimo de Alessandra Tornimparte. É na primeira década do século 21 que vai ocorrer a publicação mais regular dos livros da autora no Brasil: em 2001, a Berlendis & Vertecchia publica “Foi assim”, tradução do segundo romance de Ginzburg, dentro da coleção Letras italianas; em 2003, a José Olympio publica o volume “Família”, de 1977, reunindo dois contos longos, “Família” e “Burguesia”.
Em 2009 e 2010, a Cosac Naify republica dois romances de Ginzburg, dentro da coleção Mulheres Modernistas: uma nova tradução de “Caro Michele” e uma reedição de “Léxico Familiar”. Cinco anos depois, em 2015, é a vez de “As pequenas virtudes”, pequena joia reunindo onze textos de não-ficção (crônicas? ensaios? memórias? tudo isso junto?), publicado já nos estertores da Cosac Naify.
Desde 2017, a editora responsável pela publicação de quase todos os livros de Ginzburg no Brasil é a Companhia das Letras, que reeditou os três livros nomeados acima (pertencentes ao espólio da Cosac Naify) e publicou ainda “A família Manzoni” e “A cidade e a casa”, recém-saído do forno, além de “Todos os nossos ontens”, uma edição especial para o clube de assinatura TAG Livros. Uma exceção é o livro “Não me pergunte jamais”, reunião de 32 textos publicados na imprensa italiana entre 1968 e 1970, que saiu aqui pelas mãos da Editora yiné, em 2022, dentro da coleção Das Andere.
Da obra de Natalia Ginzburg, o que ainda não foi traduzido no Brasil? Três romances, seus textos para teatro e alguns ensaios, entre eles um delicioso texto sobre o russo Anton Tchékhov, que tem tradução para o espanhol. Outro livro interessantíssimo, também traduzido para o espanhol, é “Natalia Ginzburg, audazmente tímida”, biografia escrita pela alemã Maja Pflug, lançada em 2020 na Argentina pela Editorial Siglo XXI, em tradução de Gabriela Adamo.
Em resumo: no Brasil foram publicados, até o momento, dez livros diferentes de Natalia Ginzburg: sete romances (dois deles com mais de uma tradução), um livro com dois contos longos e dois livros de ensaios/crônicas. É uma parte significativa de sua obra, mas, vindo de uma escritora como ela, não há por que não desejar a publicação de seus outros livros.
Estante
As edições brasileiras de livros de Natalia Ginzburg
- “A vida não se importa”. São Paulo: Ibrasa, 1960. Trad. J. Monteiro. Coleção Biblioteca Literatura Moderna, v. 8.
- “Todas as nossas lembranças”. São Paulo: Art Editora, 1986. Trad. Maria Betânia Amoroso. Coleção As escritoras, v. 8.
- “Todos os nossos ontens”. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Edição especial para o clube de assinatura de livros TAG Livros. Trad. Maria Betânia Amoroso (tradução refeita). Posfácio de Vilma Arêas.
- “Caro Michele”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Trad. Federico Mengozzi. Coleção Mulheres e literatura, v. 1.
- “Caro Michele”. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Trad. Homero Freitas de Andrade. Coleção Mulheres Modernistas. Reeditado pela Companhia das Letras em 2021, com posfácio de Vilma Arêas.
- “Léxico familiar”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Trad. Homero Freitas de Andrade. Coleção Mulheres e literatura, v. 4. Reeditado em 2009 pela Cosac Naify, na Coleção Mulheres Modernistas. Reeditado pela Companhia das Letras em 2018, com prefácio de Alejandro Zambra e posfácio de Ettore Finazzi-Agrò.
- “O caminho que leva à cidade”. São Paulo: Primeira Edição, 1998. Trad. Denise Tornimparte.
- “Foi assim”. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2001. Trad. Édson Roberto Bogas Garcia, ilustrações de Paulo Pasta. Coleção Letras italianas, v. 4.
- “Família”. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. Inclui dois contos longos, “Família” e “Burguesia”, além de uma antologia crítica e uma cronologia da vida e das obras da autora.
- “As pequenas virtudes”. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Trad. Maurício Santana Dias. Inclui onze ensaios. Reeditado pela Companhia das Letras em 2020.
- “A família Manzoni”. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Trad. Homero Freitas de Andrade. Introdução de Salvatore Silvano Nigro.
- “Não me pergunte jamais”. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2022. Trad. Julia Scamparini. Coleção Das Andere, v. 40. Reúne 32 textos, a maioria deles publicados no jornal La Stampa, de Turim, entre dezembro de 1968 e outubro de 1970.
“A cidade e a casa”
- Natalia Ginzburg
- Tradução e posfácio de Iara Machado Pinheiro
- Inclui “Últimas cartas de pessoas comuns”, entrevista concedida por Ginzburg a Severino Cesari.
- Companhia das Letras
- 304 páginas
- R$ 79,90