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Estado de Minas PENSAR

Livros da editora Darkside trazem sangue e sustos no país dos predadores

Obras das brasileiras Verena Cavalcante e Paula Febbe mostram que os seres humanos podem agir de forma muito mais terrível do que entidades sobrenaturais


24/06/2022 04:00 - atualizado 24/06/2022 11:37

Paula Febbe
(foto: Divulgação)

Sentir medo faz parte da condição humana. O mal pode ser percebido por meio de detalhes, como se observa nos contos de “Inventário de predadores domésticos”, de Verena Cavalcante, primeiro livro da escritora pela Darkside Books, especializada em publicações de terror. É verdade que existem muitas maldades explícitas, mas as situações cotidianas de espanto e horror povoam nas trivialidades na maioria das 26 narrativas presentes na obra. Como no conto “Ralo”, sobre a tia que está na casa de repouso e durante a visita das duas parentes tem uma atitude, no mínimo, repugnante. Ou a menina Dorotéia e o seu preconceito enraizado com os pobres e pessoas negras.

Nascida em uma família do interior de São Paulo, Verena Cavalcante se define como uma “leitora compulsiva” e inclui entre os seus autores favoritos os nomes de William Faulkner, Stephen King, Mariana Enríquez, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Clarice Lispector, Angela Carter e Samanta Schweblin. “Minhas histórias nascem de lembranças do passado, de notícias lidas em jornais, de “causos” contados pelas minhas avós, de medos atávicos, de reflexões sobre a natureza humana, da observação dos insetos, da leitura de textos ocultistas e de coisas sombrias que vivem dentro de mim”, contou em entrevista ao blog da Darkside.

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Em “Inventário de predadores domésticos”, Verena cria várias situações de relacionamentos abusivos, em que os narradores são vítimas, mas também algozes, em cenários hostis, encharcados de sangue, a exemplo do conto “Açúcar vermelho”, o relato de uma ex-escravizada que se junta a uma seita para se vingar, por meio de magia, dos brancos senhores de engenho.

São contos recheados de revolta e perversão. A humanidade trabalhada no livro não é apenas ácida, mas corrosiva até o osso. Os diálogos internos, os pensamentos, as frases bem colocadas mostram uma brutalidade instintiva, por vezes ressentida e represada, desaguando quase sempre em eventos catastróficos e trágicos. Dessas tragédias íntimas e particulares que têm o poder interno de uma bomba nuclear. Textos urdidos em uma espécie de ferro em brasa, que machuca, amedronta e, sobretudo, marca profundamente.

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As crianças são as principais narradoras dos contos, por isso impera no livro o medo genuíno, primário, na sua forma “inocente”, nas coisas simples e aparentemente sem importância. Criar personagens infantis, aliás, com dilemas, receios e perversões, não é tarefa simples, mas a autora se saiu muito bem.

O leitor vai sendo fisgado página após página, se impactando com desfechos improváveis e originais, como em “Berço”, sobre a menina que sempre quis ser mãe e vê a oportunidade surgir quando uma mulher chega com a bebê pedindo abrigo na pensão onde a jovem trabalha. Ninguém consegue imaginar o terror a seguir.   

Em determinadas histórias, como em “Diário”, o poder do oculto é muito bem utilizado, revelando o erotismo velado e a descoberta da sexualidade. Aqui, a adolescente escreve sobre a paixão por um menino mais velho. A ilusão dela, no entanto, se apresenta muito mais perversa do que o sonho pelo príncipe encantado. “Transmutação” é de uma violência latente, de gente se metamorfoseando através da crueldade, com crianças sendo sequestradas e obrigadas a participar de rituais em um dos contos. São atitudes de puro medo e pânico. A atmosfera é de transe nesse texto, dos mais perturbadores do livro. As analogias sutis entre os insetos e as histórias conectam ao título da obra, a partir da essência do que animais e seres humanos representam na natureza.

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O tom do livro é de desesperança na figura humana, destruída pouco a pouca na sua alma, na ambivalência da crueldade pueril. Impossível não se chocar com a criança que foge de casa e se junta aos cachorros de rua, como consequência se tornando animal também. Ou em “Duas bonecas”, triste, emocionante e revoltante história sobre a menina-mãe, estuprada por um homem bem mais velho, nesse mundo caótico que agride o indefeso sem piedade.

Nessa reunião de textos presentes em “Inventário de predadores domésticos”, a autora não deixou a qualidade cair em nenhum momento. Por vezes, é impossível seguir na leitura, tamanho o nível de incômodo retratado em linhas tão ásperas, de alta tensão.

A literatura de Verena Cavalcante é feita para incomodar. Há violência de todas as ordens: feminicídio e agressão contra a mulher, infanticídio, parricídio e assassinatos diversos, entre outras pequenas tragédias cotidianas, tudo isso com causa e efeito, nunca por acaso. É um mundo onde impera o caos, organizado em uma escrita virtuosa, difícil de esquecer.

Não é de hoje que narrativas ficcionais tentam compreender e dar forma à relação ambígua entre pais e filhos. Quase todos os casos na literatura tentam conectar os sentimentos de amor às avessas pelo outro com a vivência pedregosa que desaguou tal condição de afastamento.

Verena Cavalcante
(foto: Divulgação)

Perversão e desamparo 

O ajuste de contas com o passado mostra como a memória é um terreno movediço e nebuloso. Não é diferente no romance “Vantagens que encontrei na morte do meu pai”, de Paula Febbe, também publicado pela Darkside. A sinopse do mais recente livro da escritora paulistana, que cita a perversão e a psicose como os temas de seus romances, nos apresenta o desamparo paterno, os traumas e hiatos da personagem Débora relembrando cenas passadas com o pai já falecido. A autora de “Metástase” e “Relato inspirado por orelhas” volta com um livro que curiosamente fala de amor, ainda que seja um amor corrompido, corroído, gasto por atitudes vãs entre os dois. Débora tenta se descobrir a partir da memória do homem que lhe relegou ao escanteio na infância e adolescência.

O relato de Débora acontece pouco tempo após a morte do pai, carregado de profunda raiva em determinado momento, por conta de ele ter sido, acima de tudo, abusador e machista. O amor dela é baseado curiosamente nessa dor, culminando na sua vontade incontrolável de praticar o mal.

O falecimento do pai acontece por conta de um câncer agressivo. A experiência em vê-lo sucumbindo dia após dia transforma Débora em outra pessoa. São passagens comoventes, como no sonho dela com o pai se curando e arrancando o aparelho que o mantinha vivo.

É uma escrita absurdamente sedutora, que enlaça. No início, o leitor é levado por um caminho de pena da personagem, mas no desenrolar da história é jogado abruptamente para o outro lado. A narrativa em primeira pessoa é apenas cortina de fumaça sendo desfeita em toques homeopáticos, apresentando depois a verdadeira face da história.

Luto e melancolia são coisas díspares para a narradora, com o estranho sentimento de saudade e as marcas que a personagem carrega, usadas para algo cruel como vai sendo mostrado no decorrer da trama. Algo sombrio na mente da personagem, despertada na sua relação conflituosa. “Vantagens que eu vi na morte do meu pai” tem uma escrita bem intrincada, no confronto entre raiva, paixão doentia e sede por crueldade.  

O fato de ela ser enfermeira tem tudo a ver para a realização dos seus desejos macabros, no prazer mórbido pelo sofrimento alheio. Os capítulos são intercalados com histórias de pacientes atendidos por ela. Esses são, inclusive, pequenos contos trágicos. Ajudam no clima sinistro e na ambientação por onde circula essa incomum profissional de saúde. Os diálogos entrecruzados, inclusive, mostram a mente perturbada dela, que não para nunca.

Aos poucos, o leitor vai entendendo onde Débora vai se metendo. Tudo isso ancorado no combustível da memória fragmentada da narradora, que lhe serve tanto para a sobrevida quanto para a explosão dos atos cometidos.  

A escrita de Paula é ágil, mostra uma personagem meticulosa na sua maldade. É alguém na corda bamba de vítima e vilã. A autora maneja muito bem o fio narrativo do suspense, da surpresa que virá nas páginas seguintes. Através do relato frio, a narradora conta toda a sua história para o interlocutor invisível, seus leitores, que nada podem fazer, apenas sentir a pancada da perplexidade.

Destaque para os primorosos projetos gráficos das obras que ajudam a conectar o desenrolar das tramas, sendo tão sombrios quanto as próprias histórias. A ficção de Verena Cavalcante e Paula Febbe é macabra, habita o mesmo espaço, embora por caminhos distintos. O fato é que elas provocam medo, repulsa, espanto e admiração com a mesma intensidade, cada uma ao seu modo autêntico, mostrando como o terror, o horror e a perversão podem surgir por meio de fatos comuns e triviais do cotidiano. São narrativas para os que adoram tomar sustos e sentir calafrios, e ainda assim sair das leituras sorrindo, nervosos, de satisfação.

“Vantagens que encontrei na morte do meu pai”
• Paula Febbe
• Darkside Books
• 224 páginas
• R$ 54,90


“Inventário de predadores domésticos”
• Verena Cavalcante
• Darkside Books
• 240 páginas
• R$ 59,90



Entrevista
Cesar Bravo
Editor da Darkside


“O horror no Brasil possui dilemas únicos”

Editor de autores nacionais da Darkside, Cesar Bravo também é autor dos livros "Ultra carnem", "VHS: Verdadeiras histórias de sangue" e "DVD: Devoção verdadeira a D.", finalista do Prêmio Jabuti 2021 na categoria romance de entretenimento. Confira, a seguir, a entrevista de Bravo ao Pensar, na qual ele revela os próximos lançamentos da editora, que completou 10 anos em 2022: "Dois destaques desse time são o autor baiano Paulo Raviere, que escreveu uma surpreendente ficção pulp que se passa em Salvador, e o potiguar Márcio Benjamin, que trouxe todo o assombro nordestino para as páginas dos livros." 

Como a ficção brasileira de terror se distingue da que é feita em outros países?
O horror feito no Brasil também se apoia em fórmulas consolidadas e praticadas em outros mercados, mas nossos autores possuem dilemas únicos e vozes perfeitamente distinguíveis. No terror do Brasil, o medo da violência urbana é mais exacerbado, o pavor que experimentamos em situações de violência contra a mulher é mais presente, nossos conflitos sociais e raciais muitas vezes são bem mais pesados e diretos que os horrores presentes em outras narrativas (compreensível; afinal, os portugueses sequestraram e trouxeram ao Brasil em torno de 12 milhões de africanos, e fi- zeram deles uma das maiores populações escravas do mundo; no continente americano, fomos o último país a reconhecer a abolição). A falta de confiança na política é outro exemplo do que sempre está presente nos textos brasileiros, a corrupção que enfrentamos dia após dia nas diferentes camadas sociais, a maneira como nos sentimos inseguros com nossos representantes. Também afloram a fome e a miséria, fantasmas presentes em muitas histórias e, infelizmente, em muitas realidades. Mesmo a maneira como nosso país foi colonizado é aterrorizante; afinal de contas, nossa colonização propiciou o maior genocídio de que se tem notícia na história do planeta, com uma estimativa de 80 milhões de indígenas exterminados. Além disso, temos nossa própria vastidão territorial, a exuberância dos sotaques e trejeitos, nosso sincretismo religioso. Toda essa riqueza cultural garante um terreno fértil e cheio de identidade para autores de diferentes áreas, incluindo a do horror.

O que destacaria nos livros "Inventário de predadores domésticos" e "Vantagens que encontrei na morte do meu pai"?
Apesar de ser uma obra ficcional, o "Inventário" de Verena Cavalcante é um dos livros mais verdadeiros e pungentes que o leitor de horror irá encontrar. Verdade que está presente nos diálogos, nas situações brutais descritas no livro e até mesmo na narrativa coloquial da autora. "Inventário" é um livro povoado pelos acontecimentos impiedosos que moldam nossa personalidade, de infâncias turbulentas e traumáticas, de histórias de fantasmas e assassinatos que atravessam gerações. Em algumas partes, "Inventário" também traz as pressões femininas adaptadas para a ficção, e um leitor mais atento irá perceber que o livro evolui em um amadurecimento, um ciclo que se inicia na infância e termina na vida adulta. "Vantagens", de Paula Febbe, é um livro transgressor por sua própria natureza, a começar pelo título afiado. Mais do que as mortes e passagens chocantes, o que chama a atenção no livro (e principalmente na autora) é a capacidade que Paula Febbe tem de expor dilemas femininos complexos e estendê-los, pavimentá-los até que eles alcancem todos os leitores. Em "Vantagens", temos uma conversa franca, aberta com uma serial killer, a enfermeira e protagonista que narra o livro, Débora. A cada página avançada, experimentamos seu isolamento, o sofrimento causado pela ausência do pai (estando ele vivo ou morto) e sua sede de vingança. Em um mundo ainda masculino e brutalizado, "Vantagens" nos força a olhar para o lado com um novo entendimento, e nos aterroriza com toda a perversidade que pode nascer de um amor não correspondido.

O slogan da Darkside é: "Estranhamente o medo nos cativa". O que há de cativante no medo?
O que mais cativa no medo é a capacidade que nós temos de superá-lo. Em um mundo em que o medo quase sempre nasce da falta de entendimento, vasculhar e compreender o que nos assusta pode ser uma verdadeira ferramenta de evolução, sem contar que é uma ótima receita de entretenimento e paz de espírito. Mas o medo também nos cativa por ser uma emoção primordial, possivelmente nossa primeira experiência como entidades vivas. Mesmo no momento em que nascemos, quando somos expulsos da segurança do útero e lançados nos braços da obstetrícia, somos condicionados pelo medo. Talvez nossa missão não seja combater o medo ou exterminá-lo, mas mantê-lo por perto, para que um dia possamos, de fato, compreendê-lo. 


* Ney Anderson é jornalista, escritor e crítico literário, autor do livro “O espetáculo da ausência” e editor do site angustiacriadora.com


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