Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Primeira leitura: 'Gabo & Mercedes: uma despedida''

 “Houve alguns meses muito difíceis, não faz tanto tempo, em que recordava sua esposa da vida inteira, mas achava que a mulher que estava na frente dele, garantindo que era ela, não passava de uma impostora.

– Por que essa mulher está aqui dando ordens e controlando a casa se não é nada minha? A mãe reagia com raiva. – O que está acontecendo com você? – perguntava com incredulidade. – Não é ele, mamãe. É a demência. Ela me olhava como se eu tentasse enganá-la. Surpreendentemente, esse período passou, e na mente do meu pai ela recuperou o lugar que pertencia à minha mãe como sua acompanhante principal. É o último laço. A secretária, o motorista, a cozinheira, que trabalham na casa há anos, ele reconhece como pessoas familiares e gente amável, de confiança, mas já não sabe como se chamam. Quando meu irmão e eu o visitamos, ele olha longa e vagarosamente para nós, com uma curiosidade desinibida. Nossos rostos tocam algo distante, mas jánão nos reconhece.





– Quem são essas pessoas no quarto aí ao lado? – pergunta para a empregada. – São seus filhos. – Sério mesmo? Esses homens? Caralho... Que incrível. Faz um par de anos, houve um período mais desagradável. Meu pai estava plenamente consciente de que a memória estava virando fumaça. Pedia ajuda com insistência, repetindo algumas vezes que estava perdendo a memória. O preço de ver uma pessoa nesse estado de ansiedade e ter que tolerar suas intermináveis repetições, uma, duas, tantas vezes, é enorme. Dizia ele: “Trabalho com a minha memória. A memória é minha ferramenta e minha matéria-prima. Não consigo trabalhar sem ela, me ajudem”, e depois repetia de várias maneiras, muitas vezes por hora e por horas a fio. Era extenuante. Com o tempo, passou. Recobrava alguma tranquilidade e às vezes dizia: – Estou perdendo a memória, mas por sorte esqueço que estou perdendo a memória... Ou

– Todos me tratam como se eu fosse criança. Ainda bem que eu gosto... Sua secretária me conta que numa tarde o encontrou sozinho, de pé no meio do jardim, olhando para o nada, perdido em pensamentos. – O que o senhor veio fazer aqui fora, dom Gabriel? – Chorar. – Chorar? Mas o senhor não está chorando. — Estou sim, mas sem lágrimas. Você não percebe que minha cabeça está uma merda? Em outra ocasião, disse a ela: – Esta não é a minha casa. Quero ir para casa. A do meu pai. Tenho uma cama ao lado da dele.

Suspeitamos que a referência não seja ao seu pai, e sim ao seu avô, o coronel (e que inspirou o coronel Aureliano Buendía), com quem ele morou até os oito anos e que foi o homem mais influente em sua vida. Meu pai dormia num colchonete no chão, ao lado da cama dele. Nunca voltaram a se encontrar depois de 1935. – É o que acontece com o seu pai – me disse sua assistente.





– Ele pode falar de um jeito bonito até das coisas mais horríveis.”
 
 

Sobre o autor

“Gabo & Mercedes: uma despedida” 
(Editora Record) foi escrito por Rodrigo García, filho mais velho de Gabriel García Márquez. Ele conta os últimos dias de vida do escritor colombiano, que morreu em 17 de abril de 2014, e de sua mulher, Mercedes Barcha, morta em 15 de agosto de 2020. A edição brasileira, que chega às livrarias na próxima segunda-feira (2/5), tem tradução e orelha de Eric Nepomuceno, amigo pessoal de Gabo e tradutor de várias obras do Nobel de Literatura de 1982. 
 
 
‘Gabo & Mercedes": Uma despedida’’
  • Rodrigo García
  • Tradução de Eric Nepomuceno
  • Editora Record
  • 112 páginas
  • Preço: R$ 64,90