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Estado de Minas FILOSOFIA

Didier Fassin: quando a punição também é um problema

Em 'Punir, uma paixão contemporânea', sociólogo francês debate o castigo na sociedade moderna


29/04/2022 04:00 - atualizado 29/04/2022 07:09

Nas últimas décadas, a maioria das sociedades se tornou mais repressiva, as suas leis para infrações antes toleradas mais severas, os juízes seletivamente mais inflexíveis com as classes menos favorecidas, e, em consequência, verifica-se uma explosão da população carcerária, sem que tal evolução se explique, por um aumento das formas mais graves da criminalidade como o homicídio. “O que é punir? Por que punimos? Quem estamos punindo?”, tais são as questões diante das quais se debruça o sociólogo e antropólogo francês Didier Fassin, no livro “Punir, uma paixão contemporânea” (Editora Âyiné), em um diálogo crítico com a filosofia moral e a teoria do direito, ou seja, reflexões sobre a pena no campo jurídico-filosófico. 

“Com o momento punitivo, o castigo se transforma no problema”, afirma Didier Fassin, em referência ao grande contingente de pessoas presas ou colocadas sob vigilância em diferentes países no mundo, a um alto custo não apenas para as suas famílias e comunidades. Mas, e sobretudo também, a um alto custo econômico e humano para a coletividade, com a produção e reprodução de desigualdades, além da perda de legitimidade que resulta da aplicação discriminatória ou arbitrária das penas. “O castigo, que supostamente deveria proteger a sociedade do crime, aparece, porém, cada vez mais como aquilo que a ameaça. O momento punitivo enuncia esse paradoxo”, registra o autor.

Formado em medicina, atualmente diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e professor do Institute for Advanced Study da Universidade de Princeton nos Estados Unidos, Didier Fassin aponta para a crescente evolução das estatísticas de encarceramento, a partir da década de 70,  em diversos países, com particular ênfase para a França, os Estados Unidos e o Brasil. “Em pouco menos de 60 anos, a demografia carcerária multiplicou-se por 3,5”, disse, apontando para o salto, na França, de 20 mil detentos em 1955 para 70 mil em 2016, aos quais se somam cerca de 250 mil indivíduos monitorados em regime aberto, estatística que quadruplicou. Nos Estados Unidos, a evolução da população carcerária é ainda mais dramática, aponta Didier: em 1970, havia 200 mil pessoas em prisões federais e estaduais; 40 anos depois, oito vezes mais, com o total se aproximando de 2,3 milhões. Se considerados aqueles em liberdade condicional ou que tiveram revisão de pena, são mais de 7 milhões, de uma população majoritariamente negra. 

No decorrer dos anos 2000, diz o autor, a população carcerária cresceu no Brasil 115%; na Turquia, elevou-se 145%; 59% na Oceania; 15% na África; e também registrou considerável evolução em países da Europa como a República Tcheca, a Itália, os Países Baixos, Portugal, Grécia, Inglaterra, Eslováquia, Sérvia, Espanha, Bélgica, Alemanha, na Hungria, Eslovênia e na Croácia. As honrosas exceções europeias, em que houve diminuição, são Dinamarca, Finlândia e Islândia. 

Para Didier Fassin, dois fenômenos se articulam na França com consequências para essa escalada do encarceramento: um cultural e um político. Na dimensão cultural, há a evolução da sensibilidade na sociedade quanto às ilegalidades e desvios de conduta. Contudo, tal tendência não diz respeito a todas as transgressões, nem afeta todas as classes sociais da mesma forma. “A fraude fiscal é geralmente mais tolerada do que o roubo de estabelecimentos. De fato, essa hierarquia de condutas, bem como a correspondente modulação de sanções, manifesta tanto o endurecimento das interações sociais quanto uma diferenciação de julgamentos morais”, assinala o autor. Na dimensão política, Didier ressalta a incidência do “populismo penal”, ou seja, discursos e ações públicas das elites políticas e da própria mídia que reforçam, e até antecipam, a inquietude dos cidadãos quanto à segurança, buscando benefícios eleitorais na dramatização das situações e encenações e demonstrações de severidade. “O populismo penal chega a ser tão lucrativo para essas elites que seria complicado, uma vez alçadas ao poder, colocar em prática outras agendas políticas, como, por exemplo, a justiça social”, afirma o autor. 

Didier Fassin percorre uma estimulante estrada das teorias que definem e justificam o castigo, submetendo a exame crítico, nos termos de Nietzsche, “o valor de nossos valores”. Sem negar a pertinência das abordagens para estabelecer princípios normativos do ato de punir, o autor interroga os fundamentos do castigo: “O que o define, como é justificado, de que maneira é distribuído – bemo como, de forma correlata, de onde ele vem, como é administrado, para quais crimes e a quais criminosos ele é infligido.” Lembrando que uma teoria crítica do castigo não subestima a realidade do crime e a desordem que este cria na sociedade, reitera que para filósofos e juristas, punir é “reparar um prejuízo”, proteger a sociedade, de tal forma que a legitimidade do castigo seja a restauração de uma ordem social justa ameaçada pelo ato criminal. Mas, alerta o autor, se o castigo não é justificado pelas razões que lhe são creditadas, se favorece a reiteração das infrações, se pune em excesso, se sanciona mais em função do status dos culpados do que pela gravidade da infração, esse castigo, ao visar categorias previamente definidas, reproduz e aprofunda desigualdades. Isso posto, conclui Didier Fassin, tal castigo se torna uma ameaça à ordem social. 
 
“Punir”
Didier Fassin
 Tradução de André Bezamat
Editora Âyiné. Coleção Trotzdem
192 páginas
Preço: R$ 55,90 


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