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Estado de Minas

Janine Ribeiro retoma Marx e Rousseau para refletir sobre pandemia

Em novo livro, o filósofo brasileiro recorre a conceitos dos intelectuais europeus para discutir a perspectiva ética e afetiva do combate ao coronavírus


21/01/2022 04:00

Apesar da dramática cifra de mortes por Covid-19 mundo afora – desde o início da pandemia, 5,5 milhões de pessoas faleceram em decorrência da doença –, caso se repetissem os padrões de mortalidade da peste negra, que em meados do século 14 dizimou um terço da população mundial, seriam hoje mais de 2 bilhões de mortos por Covid-19. No início do século 20, a pandemia da gripe espanhola matou entre 1% e 5% da população mundial de 1,8 bilhão à época, o que, proporcionalmente, representaria entre 78 milhões e 390 milhões em nosso planeta, onde hoje habitam 7,8 bilhões de seres humanos. “A diferença é gigantesca”, afirma o filósofo e cientista político Renato Janine Ribeiro, professor da USP e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), autor do recém-lançado “Duas ideias filosóficas e a pandemia” (Estação Liberdade). 

Tal evolução no combate à pandemia só foi possível por conquistas civilizacionais no âmbito da ética e também da ciência e tecnologia. “A perspectiva ética e afetiva, expressa no valor positivo da compaixão, em articulação com os avanços da ciência e da tecnologia, foi capaz de salvar milhões de vidas nesta pandemia de Covid-19”, sustenta Renato Janine Ribeiro, em referência a dois pensadores clássicos: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Karl Marx (1818-1883). Por um lado, nas palavras de Marx, a humanidade só se coloca as tarefas que pode resolver. Diferentemente do que ocorre hoje, no século 14, a humanidade nem se colocou à tarefa de enfrentar a peste negra porque não tinha instrumentos para tal. Por outro lado, a compaixão lapida o mundo moderno e Rousseau representa um ponto de inflexão na relação do ser humano com a crueldade. “As mudanças nos valores, na ética e até mesmo na sensibilidade, nos modos de sentir a vida, tornaram verdadeiro imperativo ético o combate à pandemia, tal como tem sido conduzido em quase todo o mundo — infelizmente, não no Brasil”, afirma o professor, que concedeu entrevista exclusiva ao Estado de Minas sobre as ideias de seu novo livro.


Como foi a inspiração para escrever “Duas ideias filosóficas e a pandemia”?
Quando começou a pandemia no Brasil, causou-me impressão muito forte a falta de compaixão do dirigente brasileiro, bem como do dirigente dos Estados Unidos e de outros dirigentes autoritários do mundo. Foi algo inquietante, porque a compaixão lapida o mundo moderno. Rousseau, no século 18, representa um divisor de águas. Até aquela época, uma espécie de entretenimento muito popular eram os suplícios em praças públicas. O próprio Michel Foucault (1926-1984) iniciou o seu livro “Vigiar e punir” descrevendo a execução de Robert-François Damiens (1715-1757), condenado por parricídio porque apenas teria roçado o braço de Luís XV (1754-1793) com uma faca, o que o levou a uma execução com requintes de crueldade, cuja lógica, como explica Foucault, era prolongar a dor e retardar a morte, para que a pessoa sofresse muito. Houve amputação de partes, quatro cavalos puxando os membros, foi submetido ao suplício da roda para quebrar os ossos. E dois anos depois, em Portugal, em pleno período iluminista, o Marquês de Pombal (1699-1782) como primeiro-ministro, a pretexto de um atentado contra o rei Dom José I (1714-1777), toda a família Távora foi alvo de um dia de chacinas na praça central de Lisboa. Então, a crueldade era aceita, mas, desde a ideia de Rousseau, ela mudou a perspectiva, foi mudando a relação do ser humano com a crueldade. Não estou dizendo que Rousseau seja o causador disso, mas houve uma mudança grande nesses valores, de tal forma que as pessoas começaram a achar que o sofrimento alheio, longe de ser uma fonte de prazer, é uma fonte de preocupação, tensão, de solidariedade com quem sofre, de compaixão. Por outro lado, para enfrentar a pandemia precisa de ciência, de conhecimento. Como disse Karl Marx, a humanidade só se coloca as tarefas que pode resolver. A ciência e a tecnologia estão salvando vidas nesta pandemia: foram produzidas mais de uma dúzia de vacinas em menos de um ano, inclusive vacinas com uma tecnologia nunca antes utilizada, como o RNA mensageiro. As mudanças nos valores, na ética e até mesmo na sensibilidade, nos modos de sentir a vida e o mundo, tornaram verdadeiro imperativo ético o combate à pandemia, tal como tem sido conduzido em quase todo o mundo — infelizmente, não no Brasil. Então, eu trabalhei neste livro com uma ideia central de Rousseau e uma ideia de Marx, refletindo sobre como essas ideias ajudam a entender as atitudes humanas em relação à pandemia hoje.

O senhor apresenta, no livro, uma analogia entre as mortes provocadas pela peste negra no século 14 e a gripe espanhola, no início do século passado, para demonstrar como compaixão e a ciência estão salvando vidas. Que números sustentam esse raciocínio? 
Apesar da globalização e maior facilidade para a rápida circulação do vírus, nesta pandemia de Covid-19 estamos num momento em que vidas estão sendo salvas por causa da ciência e da solidariedade, do imperativo ético da compaixão. Eu até fiz este cálculo: a gripe espanhola (que não veio da Espanha, mas foi chamada assim) matou de 20 milhões a 100 milhões de pessoas, entre 1% e 5% da população do planeta, que era de 1,8 bilhão à época. A pandemia de Covid-19, até agora, apesar de já durar mais de um ano, sacrificou 5 milhões de seres humanos, somos hoje cerca de 7,8 bilhões de pessoas. É um horror, mas é bem menor do que foi em pandemias passadas, porque, por exemplo, a peste negra matou um terço da população em meados do século 14. A diferença é gigantesca. Então, temos o desenvolvimento da ciência. Temos a internet, que nos permite neste momento debater, manter aulas, fazer videoconferências; o setor de comércio pode se manter graças às vendas virtuais. Nesse sentido, a frase de Marx é interessante: salvamos centenas de milhões de vidas, porque tivemos a ciência de nosso lado. Então, talvez, comparando pelo menos com o período da peste negra, podemos dizer que naquele tempo a humanidade nem se colocou como tarefa enfrentá-la, porque não tinha instrumentos para isso. O que podia fazer era rezar, fazer procissões, acreditando que a peste vinha de ares pestilentos, acender incensos, o que obviamente teve efeito nulo. Podemos dizer que neste enfrentamento da pandemia contou-se com grandes contribuições da ciência e da tecnologia, que nos permitiram sobreviver e enfrentá-la, mantendo o funcionamento da sociedade. Então, a vida tem um valor maior porque temos hoje mais condições de salvar vidas. Há 100 anos, desistir de salvar uma pessoa era mais comum, porque os elementos que tínhamos para salvar vidas eram menores. Cada vez mais há doenças delicadas que podem ser tratadas com remédios. Esse desenvolvimento científico vem junto com o desenvolvimento moral. As duas coisas são ligadas: ética e ciência. Na hora em que você pode salvar mais vidas, você efetivamente se empenha em salvar mais vidas. 

O senhor sugere em seu raciocínio que a humanidade esteja evoluindo numa direção solidária e de valores humanitários. Ocorre, entretanto, que presenciamos muitas manifestações, inclusive do presidente da República, não empáticas em relação à dor alheia, como o senhor próprio anota. Como se explica esse desvio na rota da evolução civilizacional?
É difícil entender por que motivo há toda essa indiferença ao sofrimento humano, por que existem pessoas, como o presidente, que não manifestam empatia, não têm o sentimento de solidariedade? É difícil compreender isso. Mas esse é um tipo de sentimento que subsiste em nossa sociedade, mas está em franca redução. Quando olhamos a história do mundo, desde a Idade Média, vemos o crescimento de valores positivos, como o estado de direito, a democracia, os direitos humanos e a compaixão vêm na mesma época dos direitos humanos. É no século 18 que Rousseau escreve sobre a compaixão e é nesse mesmo século que Estados Unidos e França fazem as suas declarações universais de direitos humanos. Ao mesmo tempo, contudo, uma parte da sociedade se agarra às paixões negativas, como ódio, raiva, inveja. Há uma parte da humanidade que ainda se pauta pelas paixões negativas. Mas esse número está diminuindo, assim como a democracia, depois da queda das ditaduras comunistas e da América Latina, de esquerda e de direita, cresceu muito no mundo: pela primeira vez na história, metade da população mundial pelo menos vive em regimes com liberdades políticas e individuais. Mas ainda há resistências, há uma vertente não democrática. Como também há uma vertente que quer ver o sofrimento do outro. A diferença é que, no século 18, esse prazer em ver o sofrimento do outro era público e assumido. E foi deixando de ser em nosso tempo. Quando vem o prazer com o sofrimento do outro, vem ou escondido ou sob algum pretexto. Então, esse clima de ódio é resto de uma psicologia muito antiga que sobrevive ainda em algumas pessoas, e, em momento de crise profunda, é ativado. Foi assim com nazismo, uma política de profundo ódio. 

As ideias de Rousseau sobre a igualdade, a solidariedade, compaixão são muito próximas da perspectiva pregada por Jesus Cristo. Como explicar hoje a religião sendo usada para distorcer esses valores, em alguns casos, inclusive, certas igrejas camuflando um discurso de ódio?
Temos também uma mudança nas visões religiosas, que começam a ser muito importantes, como o papa João XXIII. Ele trouxe para a Igreja Católica a ideia de que as pessoas têm que ser solidárias, que entre as várias religiões não há grande diferença como se propagava antes. Houve uma mudança grande. E, com ela, primeiro vem a ideia de que todos os cristãos, mesmo que tenham dogmas e diferenças, têm o mesmo Deus. Então o diálogo é entre os cristãos. E depois vem a ideia de diálogo entre as religiões: cristãos com judeus, com muçulmanos, com budistas e isso tudo se ampliou muito, inclusive aos ateus agnósticos. De modo que o que foi sendo cristalizada foi a ideia de que o ponto de contato entre as religiões é a ética, o princípio de não fazer ao outro o que não queres que lhe façam, no qual Jesus acaba resumindo toda a sua doutrina. Então, esse ponto é de contato, primeiro entre várias denominações cristãs, depois entre cristãos e não cristãos, sejam ateus ou de outras religiões, e isso mudou muito o sentido da religião. Há hoje cada vez mais sacerdotes de cada religião preocupados em fazer o bem, não sob aspectos da liturgia, mas sob a perspectiva da significação, procurando ver qual o significado da religião. Agora, ao mesmo tempo em que isso acontece, há uma reação. Momentos em que se tem progresso, há pessoas que se sentem deixadas de fora do progresso, reagem de forma reacionária. Então está ocorrendo um avanço do ponto de vista moral – a religião se torna cada vez mais algo ético – e aí há aqueles que reagem, que querem o dogma, que amaldiçoam as pessoas de outras religiões, que se aferram a velhos preconceitos, e até os pioram, porque se sentem deslocados nesse mundo novo. Assim, reagem até de modo irracional, porque não é racional você defender a desigualdade, você defender a crueldade, a falta de empatia ou defender que outras pessoas vão para o inferno. Então vivemos muito agora esse tipo de situação, toda essa reação.

O relacionamento do homem com o animal não é um relacionamento entre iguais, entre seres com igual racionalidade. Em alguma medida, é uma relação de poder. Isso explicaria por que algumas pessoas têm tanto amor aos animais, mas são incapazes de amar outro ser humano?
Quem tem gato não concordaria com você. Tem um ditado que diz: “Quando você quer ser amado, tenha um cachorro. Quando quer amar, tenha um gato”. O gato quer carinho, mas não é tão domável quanto o cão é. Mas, de fato, essa é uma questão complexa. 
 
“Duas ideias filosóficas 
e a pandemia”
Renato Janine Ribeiro
Estação Liberdade 
96 páginas
R$ 38 


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