Jornal Estado de Minas

Primeira leitura

"Xenofonte"

Manoel Ricardo de Lima

“rosto, quintal. caminhada lenta”

perto do chão, as grades, a 
falta da solidariedade 
de visconti e la tosse 
dell'operaio


o rio está seco, a areia 
é uma zona de lama escura 
e a fábrica de tijolos, sombra
e imagem, lembra-se que há 
uma doença de estação, a 
vida é um incômodo, sem 
casa ou repouso – 
tudo é muito pior 
porque se é quase 
pobre ou inteiramente  
pobre 

o corpo arrasta 
uma imensa 
pobreza 
emborcada
:
feito besouro –
com cimento incrustado 
na casca de ferro movendo 
patas de areia ao lado 
de tijolos 
enfileirados

a luta do rio ou das imagens não é
uma luta real >>> a multidão não serve, existe,
patologia e mediocridade, todos pobres >>> é a hagiografia
do silêncio e o silêncio não é nobre, beira a mudez, rasga-se
o mundo sem neve, vento, neblina, chuva, utopia ou 
desaparição 

oeste, leste, as histórias 
do ganges, nilo, reno, 
amazonas, prata, 
orinoco, persinunga,
são lourenço, mississipi e
parnaíba: um cinema, e este 
são os sonhos loucos 
dos selvagens, a ficção 
do presente porque 
não há nenhum luxo 
como o de não viver 
no presente

não há água, 

netty radv anyi,
ruidosa, 1928, 
escreve a revolta dos
pescadores de santa
bárbara

mas há o experimento caro
dos fazendeiros ricos, ah, mas
há, com lucro pecuniário de
8,71 %: perto do chão
tudo falha.






. “Xenofonte”
. Manoel Ricardo de Lima
. Editora Cultura e Barbárie
. 60 páginas
. R$ 28

(foto: divulgação)

Sobre o autor

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). É autor dos livros “Jogo de varetas”, “As mãos”, “A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo” e “O método da exaustão”. Coordena a coleção “móbile”, de miniensaios, desde 2006 e coordenou a edição da poesia completa no Brasil do português Ruy Belo (1933-1978) pela Editora 7Letras. Escreve a coluna Trabalhos no subsolo para a revista Revestrés. Os versos acima estão em “Xenofonte”, livro formado por uma pequena série de poemas que, de algum modo, “conversam com algumas questões retiradas de anotações de leitura em direção a um esvaziamento da esperança como possibilidade de mundo e de vida”, afirma o texto de apresentação no site da Editora Cultura e Barbárie.