Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Troca de afetos em tempos sombrios

Quando dizer é fazer, escrever uma carta, além de propor visitas, traçar mundos, pontilhar rotas, itinerar vidas, pode implicar na desmontagem de mapas. Trata-se, nesse caso, de desmedir o que está, pela razão que seja, fora de alcance. Quem escreve sabe, portanto, que não é certo encontrar o seu destinatário, aquele a quem ela se endereça, mas o texto, conduzido pelas circunstâncias e tropeços, certamente achará (ou inventará) alguém para travar uma conversa ou desconversa. Aí está o jogo do inesperado que constitui o elo entre a literatura e a vida, no qual quem lança o dado jamais consegue eliminar o acaso de um destino incerto. 





“Geografia epistolar”, fruto do desejo dos organizadores Pedro Rena e Urik Paiva de fazer circular a letra, a palavra, os afetos, de restabelecer os elos, as alianças, a aventura de ler e ser lido, se coloca como gesto de crédito à literatura e ao endereçamento, com coragem de tornar público o privado. O livro e a editora, a Surrealpolitik, chegam ao mundo quando o mundo mesmo parece estar em estado de espera, triste, crente no que se julga ser um real sem resto.

Por isso, esta ideia de organização de cartas entre amigos e entre desconhecidos, cartas que às vezes são respondidas e às vezes sabem da impossibilidade de resposta, pode ser entendida tanto quanto “obra” quanto “desobra”, posto que trabalha no impasse de um tempo sem correspondência – tempo de fixação a um certo realismo pragmático, que oblitera as utopias e os projetos revolucionários.  

O projeto, em um primeiro momento circunscrito ao Instagram, nasceu de uma amizade, de um mineiro e um cearense, que propuseram aos seus amigos atravessarem textualmente o distanciamento social ocasionado pela COVID-19. Agora, esse projeto se torna livro, inscrevendo-se na esteira de uma longa tradição afetiva epistolar na qual podemos incluir inúmeros nomes, como o do importante pensador francês Maurice Blanchot e o poeta russo Vadim Kozovoi, a quem o filósofo ajuda a entrar na França, com seu filho, em busca de tratamento médico para ele; Fernando Pessoa e o seu amigo mais íntimo, Mário de Sá-Carneiro, com quem se corresponde até o momento em que, sabendo astrologicamente de sua morte, ainda assim lhe escreve; Ana Cristina César e Heloísa Buarque de Hollanda, a quem nomeia de coração, dolcezza, dearest of my heart; os pensadores Georges Bataille e Michel Leiris, ao redor dos quais formou-se aquela comunidade inconfessável também conhecida como comunidade dos amantes.

Esses são apenas alguns dos exemplos de escrita a dois, entre dois, confinados a um porvir que geralmente falta ou de um desaparecimento que vem, e que ainda assim falam de uma amizade sem reserva. O que nos lembra a célebre amizade entre Montaigne e Étienne La Boétie, a eternizar a frase que consta nos ensaios do primeiro: “Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu”. 





Entretanto, o projeto de Pedro e Urik vai além do princípio do prazer epistolar ou de uma paixão da igualdade, desta espécie de intimidade a distância que a carta propicia. Se o livro começa com um diálogo entre os dois amigos, logo desaguamos em uma série aberta de textos com destinatários os mais imprevisíveis, em que a relação afetiva revela a impossibilidade de ser decomposta em elementos objetivos. Por que não considerar, então, estes epistológrafos e leitores, como um povo múltiplo, uma comunidade de potencialidades que aparece e desaparece, posicionando-se intempestivamente diante de fatos sociais, fatos literários, cinematográficos, musicais?

 Afinal, não se trata de um livro de cartas organizado necessariamente por afinidades, preferências, simpatias, amizades reais. Os outros e os outros dos outros são generosamente aceitos nessa partilha sideral, imaginária, formada ao acaso, em que semelhanças e desencontros têm lugar, na medida em que o comum é a sensação de dispensabilidade de poetas, sonhadores, surrealistas no tempo presente. O que nos faz recordar uma das cartas de Blanchot ao seu amigo russo Kozovoi, poeta e tradutor de poesia francesa, a quem nunca encontrou, senão textualmente (como é também o caso de uma ou outra carta do livro): “Ou ainda o sentimento de que ninguém jamais estará em seu lugar em nenhuma parte. Está nisso nosso destino de escritor, mais pesado para ti do que para qualquer outro”. 

Esta geografia parece herdar aquilo que o poeta surrealista francês André Breton imaginou representar a tarefa especial de sua poética: ser possível caminhar por onde ninguém caminhou. A primeira carta, inclusive, tem o título de “Órbita”, e junto a outras, nomeadas como “Atração”, “A propósito de estrelas” e “Sussurro sob a Lua”, fazem da escrita uma recusa do objetivismo e do realismo, singularizando-se como prática des-realizante. 

Observamos formas de ocupar o mesmo tempo e o mesmo espaço, simultaneamente a precursores, àqueles de quem as obras oníricas, políticas, sensíveis, nos permitem sonhar uma saída aérea, uma promessa de salvação, ainda que turbulenta, como nos diz a carta de Rita Pestana a Augusto Barros. Em relato do seu sonho, Rita escreve: “Uma vez o avião em piloto automático, começa a maior turbulência aérea que senti. Percebo que o meu corpo está de pé e que o meu equilíbrio é muito frágil”. O gesto político se afirma precisamente no intento de trazer a imaginação para este sintoma dos tempos desequilibrantes, em que tudo parece pender absolutamente, sem qualquer possibilidade de política antigravitacional, como defendia a filósofa Simone Weil.




Encontros inesquecíveis

As cartas apostam na imaginação, no afetivo, e, mais ainda, na possibilidade de afetação dos corpos. O medo de deixar de sentir é relatado em muitos dos textos. De fato, a imunidade parece contaminar nossos sentidos, como pensa o filósofo italiano Roberto Espósito quando nos explica que a conservação da vida está condicionada a um poder coercitivo que ao mesmo tempo protege e aprisiona o corpo. Não por acaso são lembrados tantas vezes nas cartas os encontros pré-pandêmicos, regados a música e dança, e que se tornam inesquecíveis justamente pela possibilidade de modificação e multiplicação das percepções espaço-temporais. 

Se uma amizade nasce de um estar ébrio e louco, de um estar votado ao desconhecido, como lemos na carta de Urik a Pedro, no texto de André Elias, dirigindo-se também a Pedro, a repulsa a estar sóbrio só não é maior do que a repulsa de estar embriagado. Nessa última carta, posto que parece tratar-se do diálogo entre vizinhos, a escrita funciona como uma campainha, a salvar uma margem de comunicabilidade, mesmo que abstêmia, capaz de proliferar nossas sensações de proximidade e afastamento. Em certa medida, quer se trate de longas distâncias, quer o diálogo seja bem próximo, o que as cartas operam é o apagamento das linhas de demarcação, um abrir das portas a provocar graus de despersonalização, quando alguém pode ser apelidado, renomeado, reencontrado. 

A máquina epistolar propulsa novas vizinhanças, novos limiares, descodificando, inclusive, as leis do gênero e das filiações. Uma carta em forma de poema é endereçada a uma poeta que escreve poemas em forma de carta; seria isso uma carta ou um poema em abismo?. A tradição em que se inscreve o texto de Carina Gonçalves, a misturar os estilos, as dicções e os objetos, é longa, e inclui, além da destinatária, a poeta contemporânea Marília Garcia, também Emily Dickinson, Maria Gabriela Llansol, as três marias das “Novas cartas portuguesas”, entre outras escritoras que se propuseram a embaralhar os gêneros do ponto de vista sexual e literário. 





Afinal, haveria uma forma epistolar, ou esta seria como que o resultado da devoração de vários modelos textuais? Os espectros se multiplicam, afirmando a possibilidade de um entre-lugar, como quando lemos na carta de Carina: “Vejo que o que você escreve é transparente como fantasma”. O silêncio, a lacuna, o translúcido, são importantes nesses textos, seja na escansão de versos, seja ainda no desejo de manter o assunto da carta indefinido, inespecífico. Ainda nessa carta, são os enganos geográficos ou as geografias da interpretação que prevalecem, em consonância com a poética da destinatária, Marília Garcia. 

Por que, então, não escrever cartas como se estivéssemos a estudar, a aproximarmo-nos daqueles a quem nossas pesquisas se voltam, a quem nosso sensível se devota, seja por conta de um filme, um verso, um ensaio sobre o retrato no cinema, um manuscrito traduzido e esgotado? Por que não pensar, ainda, na carta, não enquanto egografia ou conservação de si, e sim como um dispositivo coletivo, descentralizador, capaz de fazer de nós fantasmas a atravessar os limites do tempo? Uma máquina capaz de desarticular nossas noções espaciais, de armar outras percepções e outros sensíveis nos quais transitamos e atravessamos...? A carta de Joviano Maia é exemplar do que se defende em termos de uma poética da confluência, ao restituir um timbre afropindorâmico, aprendido com o poeta Nego Bispo, a quem o texto se endereça, e que, de alguma forma, o celebra, celebrando sua posição contra colonialista. Neste, lemos um poema, um “versar a resposta da resposta/ a réplica da réplica, a tréplica, / que em verdade/ nada responde/ nem faz proposta/ somente expressa, / talvez uma aposta, / em três palavras/ início meio início”. 

Conversa infinita

O poema em homenagem a Bispo diz não mais acreditar no fim. De fato, esse é um livro que comunga com a ideia blanchotiana de uma conversa infinita, ao mesmo tempo em parece disparar os inícios, os recomeços, os prelúdios, as reescritas. As práticas afro-diaspóricas de montagem e colagem de pontos dispersos no mapa e interrompidos pela brutalidade colonialista, nesta carta de Joviano, ilustram o que viria ser a posição afropindorâmica, potência conectiva que está sempre por restabelecer e recriar as ligações e as continuidades entre as culturas. Este parece ser um ponto alto do livro e do projeto organizados por Pedro e Urik: o de estabelecer pontes entre lugares distintos, além de desconfiar dos fundamentos ocidentais da escrita epistolar, tão ancorada na interioridade, na sinceridade e na profundidade, mas também da nossa cultura tão apegada a valores de linearidade, progressismo e racionalidade. 





Assim, um navio negreiro devém jangada e uma jangada devém gôndola. 

O anacronismo acaba por se revelar uma de nossas inesperadas vantagens, por dar continuidade ao inacabamento, reatualizando o começo para que encontremos outro futuro. Trata-se de um importante dispositivo para que permanecemos resistindo entre o meio e o início, como defende Joviano. A carta de Maraíza Labanca, por exemplo, custa a começar, gira em falso, sem achar o vocativo propício. Até que assume essa impossibilidade como força motriz: “Talvez esta carta vá assim, sem vocativo, porque toda ela é um vocativo... no sentido em que o Nancy fala, você se lembra? Desse apelo ao outro, um apelo vocal. Então eu talvez não diga nada aqui. Talvez, inclusive, nunca tenha havido nada a dizer. O que a humanidade faz, o tempo todo, é esse apelo, essa convocação às vezes desesperada... A anunciação de uma falta.” Algumas cartas não nomeiam, deixam lugares vazios, dignos de nossos vivos interesses em deslocamento; a sala onde um dia se poderá dançar de novo, com os mesmos ou novos parceiros, com os nossos ancestrais, ávidos pela vida. 

O vivido, o sabido e o que ainda não teve lugar se reencontram nessas trajetórias que não são simplesmente relatos, mas, mais ainda, modos de acessar o real refratário, o surreal, as poéticas que estão mais para lá do nome próprio, como numa dança sempre imprevisível, uma incógnita musical guardada para tempos futuros, para o próximo ato ou para o par ainda não formado. De modo muito pertinente, Urik, em carta-conto a Dante, fala em uma “espera ativa”; este talvez seja um livro que procede, de fato, por relâmpagos e raios, momento brevíssimo em que o passado e o presente se tornam contemporâneos, abertos ludicamente ao aqui e ao agora da alquimia da escrita. Algo da ordem do imprevisível acontece para se continuar a criar, a escrever, a endereçar-se. Qual seria essa força que nos faz deslocar os limites entre o documento e a ficção, transbordando o enquadramento, a causa da escrita, o tema a-temático de uma missiva?  

“Geografia epistolar” não é de fáceis respostas nem de trajetos previsíveis. Aqui também lemos a carta de um diretor goiano que escreve para um poeta também goiano, morto precocemente, para que juntos pensem o futuro; um compositor mostra como musicou o poema de uma poeta portuguesa, e há quem garanta que ela sorriu para o resultado; uma artista conversa com um poeta e professor, autor de um belo livro nomeado “Geografia aérea”. Há, inclusive, quem viva em mais de um lugar, como no caso de Randolpho Lamonier, artista mineiro cuja biografia no site Prêmio Pipa nos diz que “vive entre Paris e Contagem, Betim e Berlim”.

Autor de uma série de bandeiras intitulada “Profecias”, em que costura e bordado tecem mensagens vindas do futuro, Randolpho nos confirma que nunca estamos puros diante de outro, nem nos situamos num único tempo, e que a nossa descontinuidade acaba se mostrando motor para que os afetos possam resistir mesmo durante grandes intervalos, em que a ausência de resposta ou o impossível diálogo convertem nossas utopias a um pragmatismo pobre. 





A verdade é que, por mais que escritores e leitores se distanciem, às vezes sendo até anônimos ou desconhecidos uns para os outros, “nesses tempos de isolamento todos são nivelados a esse patamar de cúmplices, parceiros de uma grande empreitada.” Os nomeados e os anônimos que aqui comparecem são em alguma medida impessoais e singulares, reinstaurando um comum por meio de um convocar da carta não com vistas ao pacto que ela estabelece com o leitor, mas no sentido de sua subversão e desconstrução. Marina Rima, em uma carta enumerada, em forma de lista, nos diz: “2. Talvez tenha decidido escrever porque sabia que não escreveria.” Uma carta, como a objetiva de uma câmera fotográfica, às vezes só captura a imagem no movimento de abrir e fechar das lentes. No último texto destas geografias epistolares, lê-se com mais precisão esse movimento paradoxal, presente em maior ou menor grau também nos outros textos, de um pensamento insensato, de uma escrita que libera possibilidades, de uma dicção distraída entre o público e o privado. 

A parcialidade dessas cartas não assume a exclusividade do testemunho ou da poesia de nosso tempo, tampouco parece almejar a palavra final. Ao contrário, nesse ir e vir das palavras elas abrem brechas, tornam sensível a distância que nos habita, ampliando o insondável deste tempo com restos que ainda estão por serem indagados. “Geografia epistolar” é, então, um esforço, poético e político, para pensar a partir de dois, para sonhar este mundo que não é tão só datado nas cartas.  

“Geografia epistolar”
• Organização de Pedro Rena e Urik Paiva
• Editora Surrealpolitik
• R$ 55
• Lançamento presencial neste sábado (18/12), das 19h à 1h, no Sula Beagá (Avenida Afonso Pena, 955, Centro), com discotecagem dos DJs Carichan e Fael

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