Jornal Estado de Minas

Leia poemas de Leonardo Fróes

     

“a pandemônia”


2021

Pois é, saí fininho por aí como um rato
amedrontado mascarado se esgueira
pelas sobras do mundo: terra plana.




Nem monturos de lixo nem bagaços de farra
nem destroços de guerra se avistavam
nos espaços desertos da cidade.
Andei sem sombra, pois nada a mim se contrapunha,
carros não corriam como baratas tontas
(pilotados pelo estrondoso furor dos motoristas)
e as motos temerárias que antes saracoteavam nas pistas
como corcéis medievais cumprindo seus belicosos papéis
não tinham na desolação dos cenários
mais vez nem voz. Nenhum de nós, a não ser eu, hélas,
que era minha própria e imprópria testemunha,
se aventurava nesse dia
a ver que a máquina do mundo enguiçou.
Alguma coisa estava acontecendo...
Os soberbos edifícios calados
enfileiravam-se inertes tristemente.
As torres industriais não vomitavam
a fumaceira encardida dos seus venenos.
À falta de fiéis, ninguém vendia salvação nas esquinas.
Fecharam-se os bordéis, os bares e os bazares, os bancos.
Ninguém se atropelava, mas quem se arriscaria a namorar,
se a contaminação da pandemônia estava à solta e invisível?
Políticos artísticos não se dispunham
(talvez enfim de si envergonhados)
a sacar na sacada os microfones blindados
que filtram seus discursos pomposos de ursos de circo treinados
para enganar multidões de anestesiados otários.




Pude olhar para o ar, que estava limpo
e onde os passarinhos de sempre dedilhavam
seus trinados alegres pespontados
nos sadios arabescos do voo em liberdade.
Pude olhar para as nuvens, que aviões não rasgavam,
desenhando no fundo do infinito, tão maior do que tudo,
suas formas de sonhos que se consolidam e esgarçam. 
Alguma coisa estava acontecendo
porque um fio de luz, tão de manhã
no coração das trevas, iluminou minha presença,
bateu asas nos olhos e sumiu.  



“justificação de deus”

1981
 
o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam para construir contra a água.
Também chamei de deus a uma porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.




Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem 
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
e é talvez a calma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.
 

“contemplação dos seios das beterrabas” 

1986
 
manhã de chuva banheira
na horta sabiás
cantando
em volta
de uma enorme figueira
cujas raízes abraçam
uma pedra enorme
que parece um ovo
de musgo cristalizado
depositado pela própria
árvore galinácea
fenomenal
parada entre os canteiros
de alface
e depois uma tira
de terra vermelha
na qual despontam afundados
os seios quase roxos
de beterraba
 


“introdução à arte das montanhas”


1995

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
Um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.




Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe, 
ainda, que agora tem de aprender a descer.
 



Os poemas acima fazem parte de “Poesia reunida (1968-2021)”, de Leonardo Fróes. A antologia reúne os livros do escritor, nascido em 1941 em Itaperuna (RJ). Na orelha, Ricardo Domeneck destaca a pluralidade da obra de um “homem plural: sua zombaria nos poemas satíricos contra nossas imposturas nacionais, a contemplação da natureza também humana, nas belezas e violências do desejo”, e afirma: “A poesia de Leonardo Fróes faz também da linguagem um animal, um organismo, algo vivo.” Responsável pela edição do livro, Cide Piquet considera “meditativa” a poesia de Fróes, “aberta a múltiplos atravessamentos”: “É como se, vinda da terra, dessa conexão mais funda do poeta com a natureza, ela passasse pelo corpo antes de chegar à linguagem.” Leonardo Fróes é um dos convidados da 19ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e participará, com Júlia de Carvalho Hansen e Cecilia Vicuña, da mesa “Fios de palavras” (1º/12, às 18h). 



“Poesia reunida (1968-2021)”
• Leonardo Fróes
• Apresentação de Cide Piquet
• Editora 34
• 424 páginas
• R$ 84

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