Jornal Estado de Minas

BIOGRAFIAS

Dois livros contam a história de Guignard


Duas biografias lançadas este ano reforçam a importância de um dos mais centrais artistas do Modernismo brasileiro: “Guignard: anjo mutilado”, de Marcelo Bortoloti, e “Balões, vida e tempo de Guignard”, de João Perdigão. A vida do pintor e desenhista é acolhida com empatia pelos biógrafos, consequência imposta mais pela atípica e trágica existência do pintor do que por escolha de estilo dos escritores. Ambos lhe devotam ternura e compaixão, mas tomam o cuidado de não heroicizar a personagem.





Nascido em Nova Friburgo, em 1896, Alberto da Veiga Guignard se mudou para Minas Gerais em 1944, para dar aulas de pintura a convite do então prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek. Enraizou-se na paisagem mineira até morrer, em 1962, e transformou essa vivência em líricas e deslumbrantes paisagens imaginárias, sua principal contribuição à arte brasileira. Teve vida atribulada: nasceu com fenda no lábio, lacuna que o levou a muitas cirurgias que só agravaram o problema; ficou órfão muito cedo, e, adulto, se tornou adicto ao álcool. 

Único artista brasileiro a fazer sua formação integral na Europa, Guignard estudou na França, Itália, Suíça e, em especial, na Real Academia de Arte de Munique (Alemanha), pois a mãe se casou com um alemão megalomaníaco, que gostava de transitar pelo luxo europeu. Fato que, se por um lado contribuiu para a rigorosa formação do pintor e desenhista, também ajudou a arruinar a fortuna deixada pelo pai dele. Riqueza resultante de um seguro de vida, o maior pago no Brasil até então, obtido, segundo Bortoloti, após organizado suicídio. 

Faço brevíssimo resumo da trajetória do artista apenas para circunstanciar a quem me lê, pois mais informações serão encontradas nas duas biografias. Não darei spoiler das novidades que apresentam, por entender que um dos prazeres de se ler biografias reside no efeito que a descoberta de uma vida provoca em cada pessoa que sobre ela se debruça. Apenas destaco que Bortoloti comprova que o padrasto de Guignard, que se dizia nobre barão, barão não era e de nobre só tinha o gosto pela ostentação. 




Tratamento editorial diferenciado

As duas biografias receberam tratamento editorial bastante diferenciado. A de Bortoloti, lançada pela Companhia das Letras, apresenta poucas imagens em preto e branco, privilegiando o textual, ancorado em minuciosa pesquisa, que traz e trata informações preciosas, em especial do período entre o nascimento e a entrada de Guignard na idade adulta. Época em que, por ser menor de idade, os custos da vida do futuro pintor tinham que ser relatados à Justiça, documentação a que o escritor teve acesso. Como acréscimo, a edição oferta também um índice remissivo.  

Já a de Perdigão, publicada pela Editora Autêntica, mais enxuta na pesquisa, apresenta álbum em cromo de pinturas e desenhos do artista, além de reproduzir extensa entrevista dada pelo artista a Carlos Gastão Krebs, em 1948. Pingue-pongue que oferece vívido retrato do artista em suas próprias palavras. Apresenta também um glossário de nomes, com pequena bio para cada uma das personalidades que tiveram envolvimento com Guignard. Torna-se nítido o sentido educativo na forma como o livro foi concebido, o que pode facilitar a aquisições por escolas. 

A forma como as duas biografias são compostas, ainda que tratem de uma mesma vida e, por isso, informações se repitam, também apresenta diferenças notáveis. Sinal de que a grafia de uma vida, o mergulho na existência alheia, se faz exercício hermenêutico dos mais complexos e permite olhares transversais. Na leitura das biografias, podemos perceber como se realizaram mudanças no vocabulário visual do artista, como, por exemplo, o momento em que ele opera a modificação da leitura de paisagens e, por consequência, a materialização dessas imagens nas telas (ler trecho).

Para quem tem acesso aos dois livros, eles funcionam de maneira complementar, ampliando a fortuna crítica do artista e comprovando aquilo que teóricos chamam de “a ilusão biográfica”, a certeza de ser forma de quimera pretender esgotar uma existência em uma narrativa. Demonstra, por outro lado, a importância dos estudos monográficos para a compreensão de escolhas feitas pela personagem biografada capazes de modificar práticas, no caso de Guignard, em nossa tradição pictórica e no ensino de arte.




Bortoloti: informações detalhadas

Primeira a ser lançada, mais detalhada em relação a informações, pois o autor pesquisou acervos particulares e arquivos europeus, quase obsessiva em esmiuçar a trajetória de Guignard, a obra de Bortoloti se aproxima, nesse aspecto, ao modelo das biografias produzidas no mundo norte-americano. Mas, na contramão dessa corrente que tende a menosprezar a elegância textual, a formação do biógrafo, doutor em literatura brasileira, o ajudou a construir obra em que o caráter literário sobressai. 

Na fruição do texto de Bortoloti, podemos ler Guignard quase como personagem ficcional. Por essa voz lírica, tomamos conhecimento de suas fragilidades, seus travessos artifícios para sobreviver, a dor das constantes rejeições amorosas e a imensa dependência do afeto dos amigos. Adulto que jamais deixou de ser uma criança genial ou o “anjo mutilado”, conforme o descreveu o poeta Manoel Bandeira.  

O trabalho de Perdigão é menos formal em relação a modelos de biografias.  Contextualiza a vida do escritor buscando aproximação íntima ao biografado – muitas vezes, o personagem é chamado de “nosso” e o autor se declara “espectador de sua vida”. Há clara ênfase no período de Guignard em Minas Gerais, quando criou a escola de artes que leva seu nome, responsável por formar inúmeros artistas, hoje parte da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg). Instituição que contribuiu para a transformação do padrão educativo de artes e ajudou na formação do gosto artístico da sociedade mineira daquela época.

Perdigão: ênfase na contextualização

Se apresenta menos detalhamentos sobre a vida do artista e estilo mais próximo do jornalismo, inclusive nos divertidos títulos dados aos capítulos, Perdigão oferece a quem lê enfática contextualização dos movimentos artísticos transitados por Guignard, o modernista brasileiro de alma clássica. Inclusive, logo na abertura do livro, antes do texto biográfico, disponibiliza um glossário de termos utilizados na história da arte, o que poderá ajudar aos não iniciados em arte. 





A leitura das duas biografias deixa nítida a importância do acervo de documentos – cartas, bilhetes, fotografias – preservados no museu dedicado a Guignard, localizado em Ouro Preto, a cidade que o artista dizia ser seu “amor-inspiração”, local que inspirou algumas de suas mais célebres obras. Inaugurada em 1987 com o objetivo de preservar e difundir a obra do artista, a Casa Guignard tem ajudado a dar suporte às muitas leituras que surgem sobre a vida e a obra do pintor, que, essencialmente, se dedicou ao retrato e às paisagens. 

Aqui rendo elogios à sociedade mineira, que soube se dedicar a cuidar da memória de Guignard. Bortoloti aponta as intrigantes circunstâncias que levaram a elite de Minas Gerais a cuidar da frágil (emocional e fisicamente) pessoa de Guignard – o que pode justificar a escolha do pronome possessivo na biografia de Perdigão –, e com isso possuir pinturas presenteadas, grande parte delas ainda hoje em coleções particulares. Mas esse mesmo grupo social posteriormente criou a instituição que preserva parte de seu legado. Se não houvesse tal esforço coletivo, o precioso acervo poderia ter sido fraccionado e espalhado por outras instituições, como costuma ocorrer no Brasil.

Ambos mineiros, os dois autores somaram-se agora a esse esforço. Nas reflexões biográficas que produziram, há preocupação em aproximar Guignard do grande público, de torná-lo ainda mais conhecido, em especial, das novas gerações. Constroem para isso, cada um ao seu modo, discurso vital que insere o amado pintor em uma rede de proteção e divulgação que poucos artistas brasileiros já receberam. 





Graça Ramos é doutora em história da arte pela Universidade de Barcelona

Guignard: anjo mutilado (foto: Companhia das Letras/Reprodução)

Trechos de “Guignard: anjo mutilado”, de Marcelo Bortoloti

“O artista captava a luz do crepúsculo e do amanhecer incidindo sobre a cadeia montanhosa, transformando a cena em uma paisagem quase diáfana, impregnada pela sensação de cores e demonstrando assim uma maneira muito própria de ver e sentir a natureza. Nos horizontes de Itatiaia, o pintor despertou o gosto pela amplidão, uma descoberta que desenvolveria depois nas paisagens imaginárias de Minas, sua contribuição mais autêntica para a arte brasileira.” 

“Deixar a capital do país, cujo ambiente artístico Guignard já considerava atrasado em 1929, para ir morar numa cidade com menos de 300 mil habitantes, católica por princípio, antirrevolucionária por método e infinitamente provinciana, era uma opção temerária. No entanto, a transferência, que de imediato salvava o pintor dos recorrentes embaraços financeiros no Rio de Janeiro, acabou se revelando um achado do destino. A pintura de Guignard evoluiu, sua fama de professor consolidou-se, e em meio às montanhas de Minas Gerais ele encontrou um recanto acolhedor.”

“Guignard: anjo mutilado”
• Marcelo Bortoloti
• Companhia das Letras
• 488 páginas
• R$ 109,90; e-book: R$ 44,90 

Balões, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil (foto: Autêntica/Reprodução)

Trechos de “Balões, vida e tempo de Guignard”, de João Perdigão

“Estruturas físicas à parte, ao analisar o método pedagógico de Guignard e o caminho seguido por seus alunos no mundo artístico, a partir de seus parâmetros, ele é  constantemente relacionado aos mestres de ateliês medievais por compartilhar livremente sua técnica – que foi útil até mesmo para aqueles que percorrem caminhos bem distintos dos seus, em áreas afins como design gráfico ou arquitetura. Já como mentor e diretor da Escola Guignard, sua presença pode ser relacionada aos parâmetros didáticos modernos da Escola Bauhaus.”

“Lúcia Machado, que escreveu livros que influenciaram – e influenciam – gerações de adolescentes, era a figura mais próxima de Guignard na última fase de sua vida. Ela mesma questionou se sua aproximação se dera pelo fato de ele nunca ter sido um adulto completo: de todas as discussões que poderia ter comprado em diversas situações de sua vida, o pintor fugiu, geralmente fingindo-se de “bobo” – e, para reforçar sua sensibilidade, possuía ojeriza a piadas picantes. Gostava do sublime, de agradar, de dançar, de comer bem e de se expressar quando achava que valia a pena.”

“Balões, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil”
• João Perdigão
• Autêntica
• 368 páginas
• R$ 69,80; e-book: R$ 48,90

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